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Contos-->Augusto. -- 04/05/2003 - 22:17 (Fleide Wilian R. Alves) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Calmo e sereno, caminhava Augusto sem rumo. As pernas soltas transportavam seu corpo miúdo pela rua mesquinha, escura e pouco movimentada no centro da cidade. No bolso algum dinheiro, na mente um cordão de recordações, no coração uma certa aflição contida, no rosto um ar cansado. Mandíbula contraída, na testa uma trinca de rugas distanciavam o couro cabeludo dos olhos e outro par aproximavam-lhe as sobrancelhas. Lentamente ele caminhava em direção á lugar algum. Cabelos grisalhos, precoces, ombros tensos, caídos, mãos nos bolsos, suspiros breves, cansados de quem terminara mais uma semana estéril de trabalho. Trajava roupas usadas, presentes de um primo distante que além de lhe doar roupas - é para usar nas pescarias, dizia ele, e depois piscava em tom de galhofa - lhe cedia também o barraco bem localizado onde morava com a família. Três filhas, duas pré-adolescentes, outra ainda criança e a esposa.

Augusto prosseguia sua caminhada solitária, já numa outra rua de melhor reputação, quando uma vitrine lhe chamou a atenção. Era a vitrine de uma loja de roupas femininas com certo renome na cidade. O homem aproximou-se curioso. A loja era muito bem iluminada, holofotes eram direcionados aos manequins esguios que os deixavam com um aspecto sobre-humano. Augusto observou aqueles seres pálidos, esbeltos, de ar superior, com as mãos nas cadeiras, que vestiam as peças da loja. Depois riu com meia boca ao analisar e concluir que seria impossível existir seres humanos com formas tão perfeitas "Minhas filhas querem roupas dessa loja", pensou aproximando-se mais da vitrine para examinar os preços. Seu riso foi se transformando em dor. O veredicto foi instantâneo: "Não dá pra comprar, é caro demais", disse para si enquanto observava as blusas, calças, sandálias e toda sorte de vestimentas femininas. “Minhas filhas ficariam muito bonitas nessas roupas, melhor que nesses manequins magrelos”.

Afastou-se lentamente, cabisbaixo. Decepcionado tirou uma das mãos do bolso para acudir os olhos que lacrimejavam. "Sem dinheiro, afogado em dívidas e com quatro bocas para tratar. Como vai ser daqui pra frente?" Perguntou para si. "Minhas filhas terão de trabalhar desde cedo porque o pai delas não consegue lhes sustentar. E a faculdade? Elas não poderão fazer um curso superior?", perguntou-se baixinho enquanto as lágrimas rolavam, agora fartas. Augusto sabia, por intermédio de sua esposa, que as filhas - sobretudo a mais velha - sentiam-se envergonhadas e passavam por situações embaraçosas por serem sempre as mais pobres da turma. Isto lhe cortava o coração. Eles moravam na casa cedida pelo primo num bairro de classe média alta, incompatível com sua renda.

As perspectivas para Augusto não eram favoráveis. Ele havia estudado pouco e já entrava na casa dos quarenta. Pesava ainda o fato dele trabalhar a quase oito anos como motorista num escritório de advocacia.

Acomodado, Augusto parou no tempo. Sem qualificação profissional, sem perspectiva, sem reajuste salarial a anos. Augusto desistira de sonhar, estava cansado daquela vida. O patrão era um insensível e cético advogado. Renomado, com uma certa influência política, homem de muito papo, amigos e inimigos. Coração, nenhum.

Uma criança passou olhando para Augusto, segurando firmemente a mão da mãe, doméstica, apressada. Provavelmente a caminho de casa. Na outra mão da criança, um pirulito. Eram quase oito e a penumbra já quase se transformara em trevas. Era gente comum, como ele, gente sofrida. Quase bicho cuidando da cria. Lembrou-se de sua infância. De quando sua mãe, sem ter com quem o deixar em casa, o levava para as faxinas nas casas das madames e implorava para que ficasse quieto. “Não faça barulho e não mexa em nada, que a mãe dá um carrinho de pilhas no aniversário”, sempre prometia a mãe. Ás vezes dava, mas nem sempre. Tempos difíceis àqueles que deixaram muitas recordações e poucas saudades. A mãe morrera atropelada na rua por um carro na época em que Augusto fez a primeira barba, o pai dois anos depois, de cirrose. Aprendeu a se virar sozinho, como tantos, apaixonou-se por Maria casaram-se. Ela grávida, mas casaram-se por amor.

A rua era novamente uma rua da boca morta, zona em que boêmios abalroavam-se com prostitutas, mendigos e drogados. Gente que por algum motivo havia desistido de viver escolhendo no submundo um modo terminar os dias ou renascer das cinzas. Gente que procurava no crime, nos jogos ou nas drogas a glória. A rua suja e estreita. Dos dois lados, bares e pequenos hotéis, prostíbulos. Gente, confusão de fisionomias, barulhos, pressa de gente que deixava o trabalho e ansiavam por pegar um ônibus lotado para casa. Bicicletas, motocicletas, carros, buzinas. Tudo apertado na rua. Misturado, num turbilhão de odores, texturas, sensações. Augusto, encostado num beco, de cócoras, naquele momento observava tudo. A noite já expurgava da rua os trabalhadores do dia para dar lugar aos trabalhadores da noite. A três metros uma moça novinha vestida vulgarmente adiantava-se a guarda do ponto. Ao longo um gato preto espreguiçava. Um bêbado em zigue-zague tropeçou no meio-fio e caiu. Do mesmo jeito que caiu, ficou. Engraxates gritavam ao longe “Olha a graxa! Vai graxa aí?” Augusto observava tudo, sentia. Aquilo era o seu futuro, pensou. A noite já era feita. A lembrança da família era vaga, Augusto naquele momento era ele, só ele. Levantou-se, quis beber alguma coisa, encher a cara talvez. Mas não, sentou-se novamente de cócoras. Aquele lugar estaria infestado de pessoas com estórias semelhantes á sua, concluiu. Chorou entre as palmas das mãos. A vida não lhe fazia mais sentido. Filhas, mulher, elas se virariam bem melhor sem ele. Inconscientemente Augusto já tramara o fim de sua própria vida, faltara-lhe somente a ação. Tomou coragem, recompôs-se e levantou-se. Seria fácil encontrar alguém com uma arma a venda naquele lugar.

Augusto caminhou firmemente até um bar onde certamente encontraria uma arma barata e eficiente o suficiente para executar apenas um disparo. Entrou, examinou pouco o local, encostou-se ao balcão sujo de bebida escorrida e pediu algo. O atendente virou-se para colocar sua bebida. Imediatamente alguém, como que adivinhando o que pretendia Augusto, lhe ofereceu uma arma. Augusto não pensou, perguntou o preço, pagou a arma e a bebida, mas não tomou. Andando friamente Augusto voltou ao beco onde esteve inicialmente. De cócoras, escondido, Augusto pegou a arma na cintura e colocou o cano na boca. Segurando a coronha da arma com as duas mãos e o dedo indicador direito no gatilho ele criou coragem. Sua vida era apenas um detalhe naquele momento, faltava-lhe apenas um puxar de dedo para que tudo terminasse e suas filhas e esposa se vissem livres dele. Os olhos fechados, o suor da testa, as mãos trêmulas. Um uivo infinito brotava-lhe da garganta enquanto tomava coragem para concretizar o último ato de sua miserável vida. Nada mais lhe importava, ninguém lhe via, não era necessário deixar explicações a ninguém, naquele momento executar o último movimento do dedo indicador era o que restava, estava tudo pronto. Num ímpeto Augusto abriu os olhos, respirou profundamente, e os fechou novamente juntando todas as forças no último ato de coragem para puxar o gatilho. Entretanto, algo de errado aconteceu, após isto Augusto desabou chorando no chão sujo do beco. Se não fosse o barulho da sexta-feira movimentada de início do mês, seus urros poderiam ser ouvidos de longe. Augusto urrou por vários minutos numa mistura de choro e riso, de alegria e decepção. Ele bateu incessantemente a arma na parede úmida, esmurrou o ar. Berrou como um animal, jogou a arma longe, ficou de pé. Esmurrou o ar, chutou as latas de lixo vizinhas a ele várias vezes. Por fim gritou encolerizado “Sou um banana! Comprei uma arma sem balas!” Augusto, quando abriu os olhos pela última vez para criar coragem e puxar o gatilho viu que o tambor da arma estava vazio. O homem ficou um pouco mais de tempo ali se recuperando, mas nem olhou a arma. Estava acabado, Augusto voltaria para casa, inventaria uma desculpa para a mulher sobre o sumiço do dinheiro e trataria de esquecer a noite.

A vida não merecia acabar daquela maneira, concluiu Augusto.

O homem pensou nas filhas: a menor estava terminando de trocar os dentes e precisaria usar aparelho; a do meio fazia aula de música gratuitamente no numa fundação e precisaria brevemente de um teclado e a mais velha estava passando da hora de entrar num curso de informática.

Era melhor ir para casa, encarar a esposa, refazer as contas, dar um beijo em cada filha antes de dormir e tratar de esquecer a tolice que quase praticara.
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