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Contos-->A vida é uma coisa esquisita. -- 30/03/2003 - 14:01 (Fleide Wilian R. Alves) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Num final do mês de janeiro, o menininho brincava na rua com os amiguinhos - desde cedo.
Era numa época em que as crianças tomavam banho de chuva, empinavam pipas coladas com grude feito de polvilho, comiam frutas roubadas dos vizinhos, passavam urina nos ralados para cicatrizar mais rápido, respeitavam as pessoas mais velhas e respondiam: senhor ou senhora quando solicitadas. Aprendiam a conviver em grupo respeitando as diferenças e afirmando sua individualidade, na prática, com o mínimo de envolviemtno dos adultos. Brincavam de pião, bolinha de gule, finca, caçavam passarinhos, riscavamvam bombinhas na época de São João e repetiam de ano caso não tirassem notas mínimas nos testes escolares.
Neste cenário, o menininho jogava bola no campinho perto de sua casa quando começou a se sentir fraco. No dia anterior havia brincado na chuva, na enxurrada e naquele momento estava quente e com um pouco de coriza. Voltou para casa mais cedo do que o de costume, era época de férias escolares. A mãe estranhou o filhote tão cedo em casa e estranhou mais ainda não ter que manda-lo tomar banho, mas não deu muita importância ao vê-lo já de banho tomado no meio da tarde. O garoto preparou um lanche e comeu pouco, estava sem fome, deitou-se de bruços no sofá e pôs-se a assistir desenho animado na televisão. Ele se sentia fraco, sentia suas bochechas, olhos e orelhas arderem. O desenho que passava na televisão era repetido e não lhe instigava curiosidade alguma, era apenas um passatempo para pegar no sono. O menino sentia um misto de preguiça e febre - inebriado - não pensava em nada.
Aconteceu que inesperadamente, caiu uma lagartixa no piso da sala. Proveniente do teto sem forro, bem em sua frente, soltando um breve estampido como num suave bater de palmas. Tão inesperadamente que nenhum músculo de seu pequeno corpo se contraiu tamanho foi o susto. No entanto, um arrepio que começou no final da coluna invadiu-lhe toda a pele, até o couro cabeludo, seu coração acelerou absurdamente e sua boca secou. A lagartixa, que tinha caído de muito alto, bateu no chão duas vezes. Atordoada, assustada, absolutamente sem direção, correu por sorte em destino a porta e sumiu. Entretanto, algo ficou no lugar de sua queda: o rabo. Sim, o rabo da lagartixa se soltara e mexia desengonçadamente no chão frio da sala. O garotinho observava tudo movimentando apenas os olhos, o susto já havia passado mas seu corpo permanecia imóvel por conta de seu desânimo ocasionado pelo estado febrento em que se encontrava. Ele não queria se mover. "A lagartixa perdeu o rabo", pensou o garoto, "Meu pai disse que as lagartixinhas morrem quando o rabinho delas páram de mecher", completou mentalmente. A lembrança do que seu pai o dizera certa vez o fascinou, milhares de pensamentos encheram sua mente rapidamente, perguntas, explicações, teorias. Tudo junto, num turbilhão cerebral.
O garoto prosseguia imobilizado a osbervação da cauda que se contorcia no piso, admirado - de certa forma, hipnotizado. A vida do bichinho, que por acaso caíra do teto em sua frente, dependia unicamente do movimentar de seu membro deixado para trás. Maravilhado com a beleza da cena o menininho percebeu que o pequeno membro solto do bichinho se contorcia cada vez mais lentamente. Isto o afligiu! "A lagartixinha vai morrer daqui a pouco", pensou. Ele gostava de animais, plantas, gostava de cuidar, de dar carinho e de ser reconhecido por seus bichos. No quintal da casa ele tinha coelhos, pombos, gatos, cachorros, codornas. Sua casa parecia a arca de Noé, cuidavam ele e seu pai dos animais, mas só no quintal, sua mãe não permitia que ele levasse bicho algum para dentro de casa.
Quis então ele ajudar a prolongar a vida da pequena lagartixa, mas sem sair do sofá. O garotinho começou a movimentar o dedo indicador freneticamente, sugerindo um exercício de telecinese. Ele movimentava o dedo enquanto olhava fixamente para o rabo da lagartixa e mentalmente sugeria o rabo a prosseguir seus movimentos numa luta contra a morte eminente. "Não morre não lagartixinha, não morre não!!", implorava pela vida da lagatixa enquanto mechia o indicador na esperança de poder ajudar espichar um pouco mais a vida do bichinho. Uma fina camada de suor já lhe cobria a fronte e sua respiração se tornara sôfrega. Adormeceu assim, tentando exercitar o poder de prolongar a vida alheia, a vida de quem passou e deixou um pedaço de si.
O menino só acordou no outro dia, em seu quarto, ele fora para lá transportado pela mãe. Acordou bastante atordoado, dormira profundamente, mesmo sem janta. Seu corpo estava dolorido, sua boca muito seca e os olhos quase imobilizados por uma camada de remela. Chegou a pensar que estivesse morrido, ambos, ele e a lagartixa. Porém, logo retomou o sentido das coisas mas não quis voltar à sala para procurar pelo membro de sua amiga. Ele sabia que não adiantaria mais. "A vida é uma coisa esquisita, ela se afasta da gente mesmo a gente querendo que ela fique", pensou. Quis conversar com o pai sobre o ocorrido, perguntar a ele porque as crianças não tem rabo, mas não o fez.
Os anos passaram, o menininho se fez jovem, estudou até quando pôde, apaixonou-se, casou-se, constituiu família. Feliz. Quis o destino que nessa fase lhe fora descoberto uma rara doença, incurável, que lhe roubaria gradativamente os movimentos. O jovem não se abateu, viveu intesamente. Experimentou pouco, porém intensamente.
O jovem se fez homem de comércio, sem muita vocação, mas que lhe dava o sustento para a família. O homem era honesto, justo, fiel, religioso, bom pai, esposo. Ele pôde ver seus filhos se formarem, seus netos nascerem e a preferida lhe pedir, "Vô, me desenha um carneiro?". Ele ainda pôde ver sua situação financeira melhorar com muito trabalho. Receber muitos presentes de seus funcionários em seus aniversários. E ver também a doença lhe roubar a agilidade, o controle muscular e o dom de poder gozar a vida.
Por conta disso sofreu muito. Sofreu mais ainda quando foi obrigado a viver preso á um leito de hospital. Nessa época seus movimentos restringiam á apenas aos olhos e ao dedo indicador, o mesmo que na infância quis prolongar a vida de uma lagartixa. A doença agravou-se mais e atingiu os órgãos internos, paralisando em parte seus funcionamentos. Um dia os médicos chegaram com a família para lhe conectarem a um respirador artificial. Ele entendeu o que aquilo representava, o cérebro estava inteiramente lúcido, e o homem disse não ao equipamento com os olhos. Sua vontade foi respeitada. Poucos dias depois, já sentindo os efeitos finais da doença e sem o movimento do dedo indicador, o homem viu uma lagartixa na parede do hospital, perto do teto. Acompanhou com os olhos o pequeno animal que se posicionou da melhor maneira possível para que o homem pudesse vê-la. Parou, examinou bem o homem e com movimentos estranhos destacou a própria cauda que caiu sobre um móvel, ainda sob o campo de visão do homem. A lagartixa saiu calmamente pela janela que estava entreaberta e o homem ficou a observar a cauda que se remexia ávidamente sob o móvel. Porém, seus movimentos foram cessando, cessando. Observando seus últimos movimentos o homem teve um último pensamento "A vida é uma coisa esquisita, ela se afasta da gente mesmo a gente querendo que ela fique".
O rabo da lagartixa parou de movimentar, em seguida o homem fechou os olhos.
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