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Contos-->Pesadelo -- 13/02/2003 - 17:18 (Jardel Ramos) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
( Dividiu com Zé Venturoso o segundo lugar no II Prêmio Brito Broca de Literatura de Guaratinguetá )

Tiago é um dedicado estudante de jornalismo, apaixonado pela sua futura profissão, um jovem bem humorado, bom papo, boa companhia. Há alguns meses está vivendo uma experiência nova, intrigante. Quando, na sala de aula, um de seus professores propôs à turma vários temas para um trabalho individual de pesquisa, ele escolheu, sem pestanejar, fazer um estudo sobre o sistema carcerário do seu estado. Pediu informações, visitou delegacias e providenciou a documentação necessária, com o apoio da sua faculdade. Finalmente estava de posse da tão sonhada credencial que lhe daria acesso livre a algumas instituições, inclusive a penitenciária estadual, em dias e horários pré-estabelecidos. Então pôs o pé na estrada.
Aquela era a sua terceira visita, tinha feito entrevistas, com o diretor do presídio, conversado com guardas, porteiros e carcereiros. Com o seu jeito simples e cordial já estava fazendo amigos entre eles, inclusive alguns internos dali.
Numa das suas incursões pelos corredores, chamou-lhe a atenção uma das celas, individual, a mais isolada de todas, que estivera vazia nas suas visitas anteriores e que, agora, estava habitada por um jovem senhor, de aparência tranqüila, trancado em seus pensamentos, absorto no seu mundo diminuto, indiferente ao movimento externo. Tiago ficou a imaginar qual teria sido o seu crime, o que teria feito contra a sociedade, quais seriam os seus valores éticos e morais e quanto tempo ficaria ali trancafiado, enjaulado.
No final da sua visita daquele dia ainda estava incomodado com a persistente lembrança do homem enigmático, misterioso, apático, que em nenhum momento lhe dirigira o olhar, enquanto estivera ali lhe observando. Conversando depois com um dos carcereiros, ficou sabendo que o tal senhor de aparência comum, inofensiva, era considerado de alta periculosidade e tinha sido transferido de outro presídio por ter atentado contra a vida do seu companheiro de cela.
Para dar continuidade ao seu trabalho de pesquisa, três dias depois lá estava Tiago, perguntando, examinando, observando o ambiente e as pessoas daquele lugar. Não resistiu à curiosidade de passar mais uma vez em frente à cela especial, mas não teve coragem de se dirigir ao detento. Ao se aproximar, fingindo desinteresse, foi surpreendido pelo ocupante da cela que, sem desviar os olhos do cigarro que preparava para acender, falou pausadamente:
- Por aqui , de novo, doutor?
Tiago tomou um susto e parou. O homem continuou, agora fitando-o:
- Aceita um cigarro?
Tiago, recuperando o fôlego:
- Não, obrigado! Eu não fumo. E eu não sou doutor, sou estudante de jornalismo e estou aqui fazendo um trabalho para a faculdade.
- Tudo bem, eu não me incomodo, pode fazer o seu trabalho tranqüilo. Eu não mordo, não! Só se mexer comigo.
- O senhor chegou aqui há pouco tempo, não é?
- Há exatos cinco dias. O doutor sabe disso, assim como sabe porque fui transferido pra cá. Só não lhe contaram porque eu ia dar fim ao safado. Quer saber?
- Não precisa falar, se não quiser.
- Quantos anos o doutor acha que eu tenho? Vou fazer quarenta, e a metade disso eu passei na cadeia. E o tempo de vida que eu tiver pela frente vai ser assim também: atrás das grades. Isso aqui é a minha casa, eu moro em uma cela. Então quem entrar aqui pra dividir esse espaço comigo vai ter que me respeitar. Tem que saber que eu cheguei primeiro e que na minha casa quem manda sou eu, entende?
- Entendo, sim.
- Pois é, aqui tá melhor. Não tem ninguém pra me encher o saco, a casa é só minha.
Tiago olhou o relógio e percebeu que já estava atrasado para outros compromissos. Justificou a pressa, despediu-se e, ao dar meia volta para ir embora, o homem falou:
- Quando quiser conversar, pode voltar. O doutor é gente boa, dá pra ver.
- Obrigado, eu volto sim. Meu nome é Tiago, e o seu?
- João Batista. Ou Boró, meu apelido.
- Certo, senhor João Batista, até logo.
Foi assim que o trabalho de pesquisa da Faculdade passou para segundo plano. Tiago começou a se interessar mais pela história de um desconhecido, ficando mais tempo conversando com o presidiário que a ler e a pesquisar registros antigos daquele reformatório penal.
- João, você não parece ser um cara mau, que sai por aí cometendo crimes, atrocidades. Por que a sua vida tomou esse rumo?
- Porque não tinha outro rumo pra tomar. Eu acho que quando a gente nasce, já tem o destino traçado.
- Pois eu acho que cada um faz o seu destino. Independente de ser rico ou pobre, negro ou branco, americano ou japonês. Eu não posso decidir se vou ou não ter dinheiro amanhã, mas posso decidir se vou ser um homem de bem, se vou respeitar as leis e os direitos dos outros.
- É que o doutor ainda é muito jovem e nunca soube o que é fome e frio. Nunca precisou comer lixo, disputar com os cachorros os restos de comida jogados fora pelos ricos. Nunca foi chamado de vagabundo quando pedia uns trocados pra comprar o leite do irmão mais novo.
- Desculpe João, acho que ofendi você.
- Tô encaliçado doutor, não dói mais.
- Como tudo começou, João?
- Tudo começa quando a gente nasce, não é? Se a gente, na infância, divide um pedaço de esteira pra dormir com os outros irmãos, se quando chove a gente tem que sair de casa, em vez de se abrigar nela, se sentir fome é rotina, se é normal ver parentes morrerem sem direito à assistência médica, se a água que a gente bebe vem do mesmo lugar pra onde ela retorna depois de servida, se as nossas barrigas enormes convivem com os nossos estômagos vazios...
- Então não há chance de...
- Há chance. Mas o doutor, com certeza, já ouviu falar em probabilidade, não é?
- Claro! Dá pra perceber que você estudou, foi à escola. Não deu pra continuar?
- Quem vive de promessa é santo. Estudar era a promessa de ter um futuro melhor. Mas, “no presente”, a gente só comia se pedisse ou se vendesse balas nas ruas. Ir à escola era perda de tempo.
- Mas, até aí, não há crime nenhum. O que há é uma luta desesperada e injusta pela sobrevivência!
- Só que um dia cansa. Um dia a gente percebe que existem outras formas de se conseguir as coisas mais facilmente, com certos riscos, mas com menor esforço e melhores resultados. Aí pode ser um caminho sem volta.
- Como o seu caso, por exemplo?
- É. Mas prefiro não falar nisso agora.
- Não se preocupe, João. Não vou querer que você fale sobre o que lhe incomoda.
Tiago havia esquecido completamente do seu trabalho da Faculdade. Quase deixou passar o prazo de entrega. Teve que se desdobrar em esforços para, em poucas horas, juntar todas as informações que tinha acumulado em rascunhos, selecionar, resumir, organizar, digitar e, finalmente, entregar ao professor, na última hora do prazo estipulado. Uma semana depois foi a sua vez de apresentá-lo em classe e foi muito elogiado pelo professor e pelos seus colegas.
Terminado o sufoco na faculdade, Tiago retornou às suas visitas à penitenciária, agora claramente uma visita pessoal, já que havia concluído o seu trabalho. Como se tornara um amigo da casa, já não precisava de autorização especial para entrar e sair daquele prédio, que lembrava um castelo medieval.
- Bom dia João, como vai?
- Bom dia doutor! Pensei que não lembrava mais de mim!
- Isso significa que sentiu a minha falta?
- O doutor é a melhor pessoa que eu conheci nos últimos tempos. Trouxe o meu cigarro?
- Claro! Senão, como eu iria lhe fazer falta?
- O doutor é esperto! Hoje eu falo o que o doutor quiser.
- Fique à vontade, João, vim só lhe visitar. Por falar nisso, onde está a sua família, ninguém vem aqui vê-lo? Sabem que você mudou de endereço?
- Pra quem não ia perguntar nada! Vamos começar lá de trás, de onde eu parei, né doutor? De quando eu ainda era um garoto e que deixei de vender balas pra fazer pequenos furtos. De quando eu preferi a liberdade de dormir e viver nas ruas a dividir aquele pequeno espaço com os meus irmãos. Do tempo em que eu senti o gostinho de ser dono do meu próprio nariz. De poder cheirar cola pra espantar o frio e a fome, sem ninguém pra proibir...
- Com que idade, tudo isso?
- Com onze dei os meus primeiros passos e com doze caí na gandaia de vez.
- Imagino que você tinha amigos, um lugar seguro pra ficar!
- Na rua a gente aprende tudo muito cedo. Aprende a se defender sozinho, a não confiar em ninguém. Tive poucos amigos. Não resta nenhum vivo.
- Naquela época, chegou a ver alguém ser morto?
- A primeira pessoa que eu vi cair morta na minha frente foi a minha irmã de dois anos, quando eu tinha cinco, e brincávamos na frente da nossa casa. Uma bala perdida encerrou a vida dela num piscar de olhos. Quando eu já vivia na rua, uma vez um amigo e parceiro morreu na minha frente, todo moído por dentro, gritando de dor, depois de ser espancado covardemente por dois macacos fardados.
- Você acredita em Deus?
- Às vezes eu acredito; outras, não.
- Como assim? Ou você acredita ou não!
- Eu sei que ele tá lá no céu, rodeado de anjos. Mas não sei se é do jeito que esse pessoal diz, não!
- Que pessoal?
- Esse pessoal das igrejas, que visitam as cadeias. É gente de tudo quanto é igreja. Tem igreja que a gente nunca nem ouviu falar!
- E o que eles dizem?
- Dizem sempre a mesma coisa: que a gente precisa se arrepender dos pecados, que deve pedir perdão a Deus, que Deus perdoa qualquer coisa, até os piores crimes! Assim é moleza! O cara rouba, mata, seqüestra, estupra, depois é só dizer que está arrependido, pede perdão e vai pro céu, quando morrer! Não está vendo que é enganação? Se fosse assim o céu já tava cheio de bandidos! E pra que ia existir inferno?
- Primeiro, não é “dizer” que está arrependido. É se arrepender de verdade, de coração. Ninguém engana a Deus. Segundo, Ele concede o perdão e uma nova chance de você conquistar de novo o seu amor, a sua proteção, o paraíso, o céu.
- Não sabia que o doutor também é padre!
- Não sou padre, nem pastor. Isso é o que dizem as religiões. Você não acredita que Deus possa lhe perdoar?
- Sinceramente, não. Tenho muita coisa pesada nas costas. O doutor não me conhece direito.
- Mas, então você considera que já aprontou o suficiente, que pode parar, porque já esgotou a sua cota de maldades?
- Tá por fora, doutor. Já tô no inferno mesmo! Mexa comigo e até o doutorzinho vai ver do que eu sou capaz!
Falou e virou-se de costas, irritado, resmungando, num claro sinal de que naquele dia a conversa estava encerrada.
Nesse dia Tiago voltou pra casa se sentindo derrotado. Percebeu que, decididamente, existem lugares e situações sem volta. Começava a admitir que tinha se enganado, que ele realmente não conhecia aquele homem que julgou, inicialmente, uma simples vítima do destino. Passou a se dedicar mais aos livros, à namorada e aos amigos, tentando esquecer a péssima impressão que ficou da sua última ida ao presídio. Voltou, mais seguro, dois meses depois. O pessoal da administração havia estranhado a sua longa ausência e o cumprimentou com alegria, assim que o viu de volta. Ele retribuiu as boas vindas com alguns minutos de conversa. Ao se dirigir à cela de João Batista avistou, de longe, em frente à grade, o banquinho que ele sempre usava nas longas conversas. Isso significava que alguém o tinha colocado ali e que já avisara ao detento da sua visita.
- Bom dia João, tudo bem com você?
Boró estava visivelmente nervoso, fumando e andando de um lado para o outro da pequena cela. Respondeu com má vontade ao cumprimento, sem olhar e sem parar de se mover. Tiago, tentando deixá-lo à vontade, completou:
- Se você quiser, eu vou embora e volto outro dia.
Boró parou de imediato e olhou para Tiago.
- Não doutor, pode ficar. Eu já tô me acalmando.
- Tudo bem João, eu devia ter avisado que viria. Eu volto outra hora, tá bom?
- Por favor, doutor Tiago, fique.
Era a primeira vez que Tiago o ouvia falar “por favor” e pronunciar o seu nome, apesar de conservar o doutor. Boró continuou:
- Já está mais do que na hora de lhe contar toda a minha história. Assim o doutor some de uma vez. Eu preciso voltar à minha vida de sempre. Isso aqui não é lugar para o doutor nem eu sou boa companhia pra ninguém. E nem o doutor nem ninguém tem o direito de me deixar esperando, contando os dias e as horas, como a viúva que espera o marido que foi pra guerra.
Tiago não conseguiu segurar o riso.
- Então é por isso que você estava tão nervoso?
Voltou a ficar sério, quando viu que Boró não achou nenhuma graça.
- Você não conhece nada da vida, garoto! Não sabe quem eu sou, não conhece este lugar nem as pessoas que vivem aqui. Mal conhece aquele mundinho falso em que você vive. Não sabe da lama podre que está por baixo do verniz que você enxerga todos os dias.
Tiago estava atônito, parecia estar diante de alguém que ele nunca vira antes. Nem percebeu quando sentara no banquinho, suas mãos estavam frias, suadas. Não tinha certeza se queria continuar ali, mas seus olhos não conseguiam se desgrudar daqueles olhos duros, frios, à sua frente. Lembrou da história que os seus pais lhe contaram um dia, sobre a escolha do seu nome: deram-lhe o nome Tiago, em homenagem ao primo do seu tio Edu, que foi morto muito jovem, em um assalto. Além da sua vida, o assaltante levou apenas um relógio e um par de tênis usados
- Tá me escutando, doutor? O mundo real é este aqui, é aqui que eu vou passar o resto da minha vida. O meu destino foi selado no dia em que aquele garoto riquinho achou de morrer por causa de duas furadas bestas. Eu só queria fazer medo, dá um susto e pegar o que me interessava. Não era pra matar. Depois dele, não pude mais parar. Eu tinha só dezoito anos e me jogaram em uma cela cheia de caras drogados, veteranos, escolados. Você sabe o que é ser estuprado várias vezes seguidas, perder os sentidos e retornar, e achar que vai morrer, que aquilo não vai acabar nunca? Fui direto para o hospital, depois dali. Me costuraram e me consertaram por fora, na carne. Por dentro, na alma, não tem conserto. Mas, dois deles eu já mandei pro inferno! E vou mandar os outros, antes de ir também.
Tiago sentia enjôos, ânsia de vômito, queria levantar-se e sair dali, mas suas pernas não obedeciam a sua vontade. A voz incômoda de Boró não parava de lhe martelar os ouvidos, continuava impiedosa, ferindo-lhe os tímpanos:
- Aquele garoto não devia morrer! Eu só queria aquele relógio bonito e o tênis da moda.
Tiago não sabe como conseguiu levantar-se e sair se arrastando pelas paredes, quase desfalecido. No final do corredor ainda ouviu uma última frase:
- Doutor, aquele garoto também se chamava Tiago!

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Jardel Ramos
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