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Contos-->Sóbria -- 13/01/2000 - 01:01 (Maria Abília de Andrade Pacheco) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Abandonada em almofadas, ofereço minha carícia à sala que pede presenças, eu à espreita do acontecimento. Ouso, atitude bissexta, botar as pernas para cima, perpendiculares à parede, tudo muito matemático, nada nunca tão simples, e dá vontade de rir de ter um dia suspeitado do desfecho sinistro, ou pior, do fim sem nenhuma lágrima.
Não guardo nenhum pensamento para o meu quarto, do outro lado da parede. Apenas maneiras e quereres para a sala insistente nesses minutos de pouco antes. Meu pensamento é um relógio daqueles que vêm com vários reloginhos dentro, cada um marcando segundos e milésimos de segundos, relógio que, de tantos ponteiros, vive errando a hora que realmente conta.
A hidra verde baila mansa no oceano, disfarçada de folha, e bem se percebe que ela se deu toda ao infinito submerso e agora não pede mais uma amiga sereia. Mas como cansa o espetáculo da dança morna da hidra verde, sabendo que sou mais minha do que ela dela! É quando a hidra fecha-se em si mesma, não se sabe seja esse o treinamento de um ataque à presa invisível, não se sabe seja simples medo e justamente por isso ataca. Desligo a televisão em benefício do meu momento, já que não quero perder nem uma fagulha dos poucos minutos que tracejam o caminho entre o antes e o momento se consumando.
Nas mãos reluz a faca que cortará o queijo salgadinho. Nas minhas mãos a faca e o queijo. Sorvo o ar a goles mansos, segundo a segundo, e fecho os olhos para abstrair-me do mundo de ponteiros e relógios, derramando sobre o quadro uma lata de piche em camada densa que não me permita decifrar palimpsestos.
Para tudo haverá uma bíblia. De hoje em diante, proibido o telefone mudo, a caixa de correio vazia, e, se não for pedir muito, proibida a ausência de uma visita que seja, em pessoa, coração ou corpo, ou, pedindo muito, os três, imbricados, varando a porta da sala. Agora, sim. Adormeço todos os relógios e afrouxo o cerco da espera. O pensamento me eleva, reafirmando que devo, sim, ser a hidra no oceano, nesse escuro de céu sem lua de meus olhos fechados.
Agora enxergo estrelas neste céu. A primeira me repete o primeiro sinal. Relembro-me, sem decifrações, de que, quando menos esperava, a resposta veio à frase que pensei que ele não tivesse entendido. Ora, se entendeu, é sinal de que me ouve, a mim, que vivo de lamúrias, enchendo seus ouvidos de palavreados. Ele, impaciente, deixou claro que, por trás de qualquer uma de suas estripulias, não quer mais do que o toque, nada de surreal.
É, devo dar-lhe mesmo de presente de aniversário a escultura que comprei para mim, de um casal nu abraçado, a matéria de cimento e argamassa desmanchando a divisa dos rostos, sem o exato linde das formas que se encontram. À sombra de uma vaga incerteza, os dois num sentir profundo que nenhum cinzel delimita.
Nossas idéias se parecem com esses corpos nus se esborrachando num abraço, nossa brincadeira de matar as horas "fale, que eu desenho". "Maçã", canta você - desenho um coração . "Coração", você ordena- desenho uma maçã mordida. E rimos muito nesse jogo de uma tarde. Mas o grande momento é a minha derrota no final. "Ornitorrinco" é nome difícil para um bicho fácil, mas da última vez eu, que me dava por derrotada, aventurei-me em finalmente enfrentar o bicho, que você exigia perfeitíssimo, porque o nome era de algo que tinha de ser perfeito, porque não havia como inventar desenhos abstratos para um nome tão raro. Mera estratégia sua para me caçar mais uma derrota. Mas eu consegui, enfim, desenhar um ornitorrinco quase fotografia, tamanha a perfeição. E você desistiu do jogo.
Agora neste momento exato, eu de olhos fechados, afundada nessas almofadas não tão fofas, tenho para mim que você vai longe demais, quando quer que eu lhe aponte sentimentos num jogo solitário, você a caminho, gritando em telepatia seus códigos: "ânsia". "distância". "transparecência". "irregularidade".
Assim você me violenta, querendo-me além do que não sou. Aprendi a amar o concreto, mas sem procura, porque o erro está na procura. Bom é levar a vida sem fundo musical, mesmo que toquem todas as músicas de uma orquestra inteira, e não viajar nos enfeites, mas ater-se ao fato. O que não significa desprezar a beleza, mas significa não ir na onda do cenário, porque a música sopra o disfarce. Quando todos comiam churrasco temperado com chorinho e engoliam a música em tacos de carne malpassada, a cantora novata errou de endereço e sapecou um roque pesado na cara da churrascaria. Acabou levando uma chuva de bifes na cara. A música era de tanta obscenidade, que o amor ficou reduzido a um bom corte de picanha. Heresia, sacrilégio!
Não faça croché de minhas palavras, não me venha mais tarde com o lamento: você me disse um negócio assim, que me deixou encafifado - e dá-lhe impropério! Não, por Deus, o que eu disse é que eu achava, e não que isso era, aí a diferença, e afinal valeram os quarenta minutos que despendi a lhe dizer minhas preciosidades?
Você, com os olhos distraídos dentro do aquário por onde passeiam hidras verdes, não viu nem ouviu nada. Odeio quando falo e você responde "claro". Pois se nada digo de claro, pois se quando verbalizo, expilo interrogações, pois se o que aceito eu mastigo e engulo...
O amor que você desenha é uma lata entornada de tinta sempre e sempre. Com o tempo sei que vamos nos inovar mais e mais em nossas técnicas, e acho que é assim mesmo que devem começar as coisas, assim os princípios. O telefone adormecido. Mudinho, mesmo que haja uma linha entre a minha casa e a sua, um caminho que pode ser feito de avião, de tão longe. E sua voz vindo até mim e entrando em minha casa, altas horas, fazendo companhia, cantando uma música na hora de cantar uma música, que é quando começo a brincadeira do "que música", ao mesmo modo da brincadeira do "desenhe".
De tanto brincar de listar coisas, já quando me interrompo para prestar atenção a suas sobrancelhas, fico brincando o que me sugerem elas, o que me sugere seu nariz, o que me sugere sua boca, o que seus dentes. E vejo você assim, estátua, e solidifico sua imagem na cabeça, e a reinvento, plantando novos olhos, narizes, queixo e testa, como nesses retratos falados que a gente vê a polícia desenhar quando caça bandidos. Mas o desenho que lhe faço, assossegue-se, é aquele que os grandes mestres do tempo chamam modestamente "esboço", isto fazendo apenas para humilhar a gente, pobres mortais que mal sabem rabiscar aquele bonequinho infantil de perninhas de palitos e braços abertos, uma bolinha em lugar da cabeça.
No meu desenho recrio você a bico de pena, prestando atenção às várias borrachas, que conservo para apagar e refazer os defeitos que borram sua figura. Que me apego aos seus mais mínimos defeitos para robustecer minha vaidade. Que ando tanto precisando de bons espelhos, pois os meus andam turvos, mostrando uma imagem que juro que não é a que faço de mim.
Dia desses um sonambulismo antigo me voltou de uma hora para outra e acordei com um grito meu, eu olhando para mim no espelho do banheiro. É horrível uma cena assim, não queira isso nunca! E por quê? Lá vem você dando causa a tudo, bom mote para uma brincadeira: "Por quê?"
Mas ando enjoada de ficar listando coisas. Não vê que é um vício? Não vê que as estacas fincadas são para a construção de um cassino, esse velho repetir "duas certas uma errada", "duas certas uma errada", e depois mudar a seqüência, e depois não obedecer a seqüência nenhuma, sendo esta a nova seqüência? Que lhe conto: um rapaz me revelou o truque dele. Ele assegura que decifrou todo o enigma da mulher, e nenhuma agora lhe escapa.
Se você continuar me arregalando esses olhos e abrindo tanto essa boca, sou capaz de desenhar-lhe em caricatura, você uma cara em círculo, com um par de órbitas arredondadas e uma boca de copo circulada. Sem língua, nem dentes. Só boca. Mas sou caridosa e vou dizer o que seu coração quer ouvir. Você é tão fácil de decifrar, mas eu também sou, todo o mundo é.
Mas o rapaz, conto o segredo dele a você e garanto que vou espalhá-lo para todas as minhas amigas mais verdadeiras, aquelas que me ligam de madrugada sabendo que eu não vou me importar de ficar ao telefone duas horas, da uma às três, para depois não conseguir dormir mais porque sei que o dia amanhecerá daí a poucas duas ou três.
O segredo, primeiro que eu não devia mesmo era contar-lhe nada, revelar-lhe, porque tudo na vida vive se repetindo, se reciclando, e os almanaques deviam mesmo era ser queimados, porque não se cansam de repetir os mesmos conselhos ao povo que vive errando, mesmo sabendo que aquele não é o passo certo, mas errando atrás da resposta. A busca de novo! Não se buscasse nada, tudo lhe viria às mãos em aditamento, mas inventam e procuram e catam música nos mais vazios momentos, daí o castigo natural, preciso.
O segredo do rapaz é que, quando você conhece uma moça linda, quando casa direitinho o tracejado da figura da moça com o desenho que você esboçou dela, sabe o que você faz? Primeiro, dê um jeito de aproximar-se da moça a qualquer custo. Nesse primeiro momento, amasse sua vaidade e jogue-a na lixeira mais próxima, nunca na rua, à indigência, respeite seus sonhos e suas ilusões. Faça de um tudo: flores, mesmo que a moça seja alérgica, pois saiba que ela se ilude, presa a essa verdade de que mulher adora receber flores. E bilhetinhos, todos ridículos, pois o que ela procura em você é o ridículo mesmo, para se abastecer do que considera as grandes qualidades dela. Você sabe, mulher gosta mesmo é de parecer indispensável a um homem. Alimente isso nela, deixe que ela sonhe que é o seu ar, a sua água, a sua escova de dentes, aquela camiseta sua descorada que lhe dá sorte.
Mil perdões, admito que você tem razão, estou enumerando coisas, já estou caindo na brincadeira de novo e fazendo outra lista. Desta vez a brincadeira parece ser "o que fazer para inflar a vaidade de uma mulher".
Experimentada ao cansaço essa etapa, lembre-se: nada de cobranças. Viva na pele aquele trecho bíblico que fala do despojado, do que tudo aceita, do que tudo consente (1, Coríntios, 13, 4-7). Atinja o ponto G da menina com essas preliminares. Se ela não lhe der bola, tanto faz, que o que ela quer mesmo é que você se desdobre em presentes, então vamos, massacre-a, invada-a o quanto possa, usando de tudo, vale até recadinho enviado por amiga, mesmo escrever seu nome na etiqueta da camiseta dela, tomar-lhe a agenda e anotar sem nenhuma gentileza seu nome, telefone, endereço. Outro ponto importante: sem autorização.
Continuo fazendo lista?
Então não vou mais dar dicas, que sua lista fará você, que afinal conhecerá a moça e saberá, com jeito, conhecer seus gostos e anseios. Isso, seja um Drácula, gota a gota.
Tudo bem, e no dia em que ela estiver embriagada de seus fascínios, de sua inabalável disposição em manter-se fiel ao existir só por ela, nesse dia, sem mais nem menos, nesse dia o mais comum, suma sem rastro. Aí, ela sentirá sua falta e correrá atrás. Que se antes você não lhe interessava, agora ela se penitencia de não ter sabido prendê-lo, pois você a queria, sem nenhum esforço dela.
Vai que um dia ela o procura. Então, você terá de presente finalmente aquela escultura casadinha com o esboço que num dia de chuva você tracejou. Infalível.
Outro rapaz me ensinou, sem que eu lhe pedisse: chegar ao coração de uma mulher? Seja uma! Isso quer dizer: arranje situação e jeito para comentar o tom do cobre do batom que ela usa, assim bem de pertinho, comente o perfeito contorno dos lábios. Pergunte-lhe por que não tem nenhuma peça vermelha no guarda-roupa, pois esse é um assunto que não fica sem resposta, ou às vezes fica sem resposta, mas não passará despercebida a sua sensibilidade.
Acessórios: olhares demorados, desses que não se desviam nunca, desses que são mesmo sem vergonha, que parecem querer tirar um retrato do rosto da moça e tatuá-lo sabe lá onde. Jamais deixe de comentar o penteado dela, a cor do esmalte, o brinco combinando, etc., etc. Retorno seguro. E finda mais uma lista.
Faça tudo e mais um pouco, vire-se do avesso. Depois, desapareça, sem tchau. E insista no seu isolamento mesmo diante de insinuações dela. Agora vale o preto no branco. Ela tem mesmo é que correr atrás, você de caçador a caça. A vítima está no papo. Ela correndo atrás, você sumindo do mapa.
Diz o rapaz que esses truques dão tão certo, que o ritual da conquista até perdeu a graça. Diz ele que a moça, coitada, vira um zumbi inventando tudo o que é recurso de espera e paciência, tudo fazendo para merecer o amor de quem agora a domina.
Neste instante, de olhos fechados, enxergo-me bem um zumbi, mas não um zumbi cego e bêbado. Sou um zumbi consciente, frio, versado nas artes de se fazer zumbi. Assim tenho errado, e erro, de plena consciência, conhecedora de todos os macetes, aguardando o momento do meu acontecer absoluto, depois de bons meses de uma certa ausência. Quase adormecida, porém sólida.
Moral da história: afinal, não sei lidar com os ornitorrincos.
A campainha toca o primeiro traço, mesmo que eu adivinhe todo o resto da figura.

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