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Contos-->O dorso do dragão -- 25/06/2002 - 01:37 (Darques Lunelli) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O dorso do dragão

Jamais, pois, maltratarei a vida numa esperança vã e fútil, buscando o que não pode existir: um homem sem mácula entre todos nós que nos nutrimos dos frutos da vasta terra. Se o encontrar, trar-vos-ei as novas. Mas louvo e amo todo homem que nada faz de ignóbil por livre vontade. Contra a fatalidade, nem os deuses lutam.
SIMÔNIDES

Aliança negra,
paixão.
Dorso do dragão,
prisão.
HILDA PINTON


Conversamos pouco quando estamos juntos porque nosso tempo é escasso. É durante os intervalos de suas horas de estudo que liga para saber se podemos nos encontrar. A princípio, digo que estou ocupado, não posso estar à sua disposição quando bem quer. Então ele diz que precisa ver-me hoje, sem falta, do contrário entrará gritando em minha sala, pouco importa o que digam.
Não te atreverias.
Experimenta.
Faz silêncio esperando minha decisão. Então digo:
Me espere no bar, às cinco.


É nosso quinto encontro. Da primeira vez convidou-me para um café. Hoje sabemos que preferimos outro tipo de bebida, mais forte, doses de genebra que se acumulam e nos libertam.
Estava louco pra te ver.
Mentira. Terias me procurado antes.
Não foi possível.
E eu tenho que esperar.
Não vai ser sempre assim.
Não acredito.
Quando vais aprender a confiar em mim?
Nunca, digo, e sei que estou mentindo.


O quarto é azul e impessoal. Em frente à cama, há uma cômoda onde estão as toalhas dobradas, também azuis. A cortina é de um tecido grosso, talvez áspero ao toque. Os lençóis parecem limpos. Ele liga a televisão e deita-se ao meu lado. Pega dois cigarros do maço em minha pasta. Depois, pede duas doses de genebra pelo interfone.
Não posso me demorar, diz em seguida.


Nos despedimos diante da porta. Pergunto quando voltaremos a nos ver e ele sorri, sem jeito.
Quando der, comento.
Ele segura minha mão entre as suas e pede que tenha paciência. Olhando para ele não posso deixar de acreditar, mas algo dentro de mim, como uma sirene, vibra sugerindo cautela. Dou-lhe as costas e entro. Do alto do primeiro lance vejo-o afastar-se, cabisbaixo.


Eu a vejo inclinar-se sobre seu corpo. Seus longos cabelos negros cobrem o rosto, mas adivinho o brilho nos olhos, os lábios úmidos. Ele está deitado de bruços, indiferente. Sua atenção está voltada para o som de passos na escada. Quando a porta de ferro do edifício se abre num rangido melancólico, cerra ainda mais os olhos, concentrando-se no som dos passos: há diferenças não percebidas pelo ouvido desatento, não para ele que me espera.
Ceres beija seu corpo, acaricia o ventre, detém-se. É como se ali não estivesse, ou como se a ele não importasse. Não é raiva o que sente. Talvez uma mágoa fina, lâmina que trespassa a alma, mas isso Ceres ainda não sabe. Abre a janela e recebe na cara o soco da noite fria. Respira profundamente.
Vou embora.
Ele nada diz. Tampouco abre os olhos ou sorri. Agora também ouve os passos dela, mas afasta-os do pensamento imediatamente.


Chegando à rua, indecisa, fica alguns instantes parada na calçada. Poderia ir para casa, mas não suportaria o silêncio. Toma o primeiro ônibus.
Não tenho que tolerar isso, pensa, sem raiva, repito.
O bar está aberto. Da esquina vislumbra a porta, vermelha, o número 23 em negro. Ao aproximar-se, ouve a música e reconhece Sarah Vaughan. Crazy he calls me. É o que repete Ceres ao entrar.
Senta-se, abre a bolsa e tira do maço um cigarro. Involuntariamente, interrompe o gesto, dando ao garçom atento tempo suficiente para antecipar-se com o isqueiro aceso.
Vodca?
Sim.
Gelo?
Uma pedra, por favor. E algumas gotas de limão.
Àquela hora o bar ainda está vazio. Corre os olhos e descobre, ao fundo, à direita, a silhueta de alguém. Um homem. Não consegue vê-lo claramente até que, ao acender seu próprio cigarro, o clarão ilumina seu rosto. Sem hesitar, caminha em sua direção, sendo seguida pelo olhar atento do garçom.
Sabendo-se oculta, dá-se o direito de estudar os gestos do homem. Olha pela janela, absorto, traga lentamente a fumaça, depois fecha os olhos ao beber do copo que tem em uma das mãos.
Ele está esperando, ela me diz ao sentar-se.


Eu a vejo com os olhos de um bêbado, e assim ela me parece linda. À luz insinuante do bar tal beleza agride. Ainda mais a quem se habituou à solidão.
Eu sei.
Os lábios vermelhos estão úmidos, como antes, quando a vi sobre ele, e sinto vontade de beijá-la, de partir seus lábios como quem parte uma fruta tenra.
Não acho correto o que fazes.
O que eu faço?
Desapareces. Não, na verdade não desapareces porque jamais estás presente. Claro. É com tua onipresença que agrides. És um monstro. E, ainda assim, não há sangue em tuas mãos.
Deveria haver sangue em minhas mãos?
Deveria. Mas a alma não sangra. Os ferimentos são invisíveis.
Logo, não existem.
Achas mesmo que acredito?
No quê?
Que sejas assim.
E não sou?
Ela sorri. Sabe jogar, a maldita, urge cerrar os portões da cidadela, soar os clarins, armar os exércitos.
Ele está bem?
Por que não vês por ti mesmo?
Porque estava te esperando. É a ti que quero.


O que ele quer não sou eu, mas quer que eu acredite. Então eu acredito e toco sua mão. Ele não sabe, mas percebo a intenção de livrar-se desse toque. Eu o odeio.


Ela me odeia, me odeia tanto neste momento que seria capaz de entregar-se acreditando que na verdade não a quero, que finjo este prazer. Poderia deixá-la acreditar nisso, mas seria uma certeza, e a quero duvidosa, descrente, então conduzo sua mão até o volume entre minhas pernas.
Não lhe dou tempo para reagir, quando percebe a estou beijando. É minha. Aperto ainda mais a mão entre minhas pernas e ouço seu derradeiro suspiro.
Vamos embora deste lugar. Por favor.


Através da janela chegam os sons da rua.
Hoje a faxineira não virá, penso enquanto vejo-a vestir-se. A roupa suja deve ficar atrás da porta do banheiro, do contrário dirá que não a encontrou.
O que diremos?
A quem deveríamos dizer alguma coisa?
A ele.
Gilles? Não diremos nada a ele.
Tens mesmo coragem de esconder isso?
Acaso cometemos algum crime?
Crime algum, mas traímos sua confiança.
Não foi a confiança dele que traí.
De quem, então?
A minha.
Por quê?
Fazes perguntas demais, Ceres.
Não te sentes culpado?
Sim, sinto-me culpado. Mas não pelos motivos que imaginas.
Estou sentindo-me suja.
Por que não tomas um banho antes de saíres?
Não sejas cínico.
É que estás com um ar tão sério. Queria quebrar o gelo. Tolice. Foi quebrado ontem, não é mesmo?
Não me faça sentir ainda pior.
Não é essa minha intenção.
Às vezes, chego a acreditar que descobri como tua mente funciona. Então, de repente, fazes algo que não seria a atitude daquele que pensei conhecer. Como agora.
Esperavas o quê? Que levantasse às seis horas, buscasse flores e trouxesse o café na cama? Faça-me o favor.
Custava fingir?
Sim. Além do mais, estava bêbado ontem. Nem sei como cheguei aqui. Quem tirou minha roupa?
Tu és nojento.
Ela bate a porta quando sai e sigo-a, em pensamento, até a rua. Vejo-a acenando para um táxi; vejo-a olhar com raiva para a janela quando o carro afasta-se; vejo-a chorar quando percebe que perdeu o jogo.


Quando o telefone toca eu sei que é Gilles e, desta vez, não finjo ter restrições quanto ao nosso encontro nem digo coisa alguma sobre o tempo em que não ligou, esse tempo em que foi preciso disfarçar a dor. Às cinco, no bar, eu o encontro com o copo de genebra diante dos olhos. Sem dizer nada, me sento, aceno para o garçom e sorrio quando o ouço dizer:
Estava louco pra te ver, Dragão.


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