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Contos-->NightHawks -- 21/06/2002 - 23:55 (Darques Lunelli) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
NightHawks


Começou como um jogo, e foi num trem, depois num ônibus, por fim nas ruas. O método, se era método, ou algum dia foi, consistia em contar com o puro acaso. Talvez nisso residisse o encanto e o empenho diariamente renovado de jogar. Sim, começou como um jogo, como tantas coisas começam e terminam.
O Phillys é o ponto terminal.
Antes esperava que alguma delas olhasse e então, caso virasse o rosto para a direita antes da estação do trem ou do ônibus onde havia determinado descer, tentava estabelecer contato, retribuir o olhar com uma tal intensidade, de pedido ou de súplica, por que não? e esperar colher o resultado instantaneamente, porque não havia tempo a perder estando todos dentro daqueles veículos, espremidos temporariamente uns entre os outros, vagando em pensamentos tão íntimos e únicos e jamais confessados publicamente, ainda que dissessem respeito exatamente sobre a situação precária de sermos obrigados a uma convivência tão estreita quanto fugaz, entre as estações iniciais e terminais de trens e ônibus. Penso que pensei tantas vezes nessa metáfora das estações e tive sempre comigo essa certeza de ter apanhado o veículo a meio caminho e ter de obrigatoriamente descer antes do final do trajeto, numa estação secundária qualquer destinada apenas a mim – aqui não cabe pensar penosamente sobre as agruras da vida, porque houve muita diversão, e se não soube aproveitar, cabe a mim a culpa, pois a vida, ah... A vida! Deu-me todas as chances e oportunidades, e correu todos os riscos comigo, mas eu... Bem, talvez não tenha aprendido a construir telhados de capim, mas aprendi a jogar, e isso é bem mais do que muitos têm, pois não?
Então, contato feito, era outro que falava, um João que brincava o tempo todo, caso ela mostrasse a necessidade de alegrar-se com alguém depois de tanta dor e tristeza acumulada em seus olhos, pois não me quereria de outro jeito. Era um palhaço, esse João, e somente eu sei o quanto odeio os palhaços, mas era um palhaço para ela, essa Maria desse João, por uns dois ou três dias, duas ou três semanas, para desaparecer cruelmente numa tarde alegre e azul, depois de um café ou de um cálice de vinho cheio de promessas tão azuis e lindas e precárias quanto o fato de o dia ser assim, azul e alegre, porque amanhã chove, ninguém tem controle, ou quem tem não se importa com pequenas interferências, e lá vamos nós, atravessando a floresta dos guarda-chuvas com sorrisos nos lábios ou comissuras, como quiser cada um, mas seguindo através da floresta, alguns sabendo que uma vez a meio caminho tanto faz ir em frente ou voltar.
Era, noutro momento, o dono de toda tristeza porque Alice precisava exercitar seu sentimento maternal num assustado Coelho Branco, sempre apressado e atrasado e louco por um toque, um abraço, um telefonema no meio da tarde apenas para responder que Sim, tudo continua na mesma, mas talvez hoje à noite possa contar-te detalhadamente esta coisa que não consigo tirar de dentro deste peito há tanto tempo, e Sim, sim, tu és a saída que vislumbro depois de anos de clausura, preciso de ti como do ar, minha doce Alice, não me abandone nunca, farol da minha vida, ou naufragarei no vazio da minha pobre existência. E naufraguei para tantas alices que sou sozinho um cemitério inteiro de escunas afundadas e destruídas, mas quem sem importa?
Então o Phillys, este banco onde me sento todas as noites de quinta-feira e espero. Primeiro ele se aproxima e esfrega o balcão com aquele pano úmido que um dia foi branco, não me encara e pergunta como estou. Nunca digo e peço invariavelmente que prepare um bife com cebolas, traga uma garrafa de vinho. Ele vai fazer o que pedi, mas sei que me observa com o canto dos olhos. Ele sabe do jogo, mas finge não saber. É apenas mais um jogo – isso sei eu. Depois chega o velho, amarrotado em seu terno vagabundo, ostentando sua coleção de gravatas horríveis e desnecessariamente joviais, ah sim! ele tenta aparentar menos idade, ridículo como tantos, como talvez eu mesmo sem dar-me conta de sê-lo. Senta-se no lado oposto, quase em frente a mim, trocamos um olhar e ele mergulha no primeiro de uma dezena de copos de uísque, esperando qualquer coisa, uma novidade que, por favor, o tire da mesmice que é sua vida, mas não tenho conhecimento de uma mulher que conheça meus métodos. Talvez fosse conveniente estabelecer franquias, apenas para o caso... Ele espera qualquer coisa, mas entra a ruiva, vestida de vermelho, aquela fivela colorida no cabelo, que cumprimenta o Phillys e senta-se ao lado do velho, invariavelmente, com a familiar camaradagem de quem já foi amante, e beija seu rosto com um incontestável carinho, mas um carinho distante, se me faço entender, de quem sabe que nada que foi retorna, ou se retorna é apenas para machucar ainda mais, então melhor será que fique onde quer que tenha ido, graças damos pelos caminhos insondáveis e por tudo o que desconhecemos. Ela me olha, sim, com interesse velado ela me olha e eu retribuo com um olhar que tem a intenção de dizer-lhe que também estou caçando, não necessariamente o mesmo que ela ou ele ou o Phillys, mas nos reconhecemos, tenho certeza, como certeza tenho de que ela me sabe um predador e sua vida não comporta mais um estrago, ainda que um belo estrago que a embriagasse por umas três ou mais semanas, pois sente o cheiro do sangue em minhas mãos, a ruiva, e eu a respeito por isso.
O bife finalmente, mais um cálice de vinho, o som das vozes dos descartáveis habituais do bar, tudo numa harmonia sinfônica irritante de tão certa; por que não caem meteoros nas cidades? Alguém já ouviu falar sobre a queda de um meteoro no centro de uma cidade, destruição de dezenas de prédios e perdas irreparáveis de vidas que as autoridades lamentariam durante semanas e o principal telejornal do país noticiaria durante outras intermináveis semanas, para depois esquecer tudo por causa da descoberta de um rombo no orçamento ou por defeitos nos botões que decidem os destinos da nação? Não acontecem mais incêndios? Onde foram parar os bombeiros? Quando foi a última vez que um bombeiro foi visto? Há paredes de vidro por todo bar, mas não passa um carro há muito tempo, desde que cheguei nenhum carro. Para falar a verdade, nem mesmo uma pessoa caminhando pelas calçadas, e estamos numa esquina movimentada, ou atravessando a rua, ou correndo. Onde estão as pessoas? Se aconteceu alguma coisa, se somos os únicos sobreviventes, que triste começo... Teria que estabelecer contato com o velho e o Phillys, talvez encantar a ruiva e convencê-la das necessidades do nosso intercurso, pelo bem da nova humanidade. Mas, vejam vocês, que belo começo seria! Nunca mais cigarros turcos, porque não existiriam os turcos; nunca mais champanhe francês, porque os franceses não existiriam; nunca mais vinhos chilenos, chocolates suíços, aviões, carros novos, jornais diários, revistas semanais, novelas na televisão, cds novos, desfiles de moda em Paris, Milão, Tókio, New York; adeus todo mundo! Evoé mundo novo!
A porta bate com força e sobressalta todos nós que olhamos na sua direção, o que vemos talvez nos intrigue, mas fingimos que não, porque nada vemos, Foi o vento diz o Phillys, todos sorrimos e retornamos aos nossos pensamentos... O último naco de carne, então o Phillys que esteve o tempo todo de olho em mim mesmo conversando com os outros dois vem apanhar o prato e os talheres e perguntar o que mais eu quero. Aponto para a garrafa de vinho e sei que trará outra e outro copo limpo.
Nunca antes havia reparado no silêncio desta rua. Os três parecem ler meu pensamento, porque olham todos para a rua, para a esquina, para a porta, através das vidraças, apuram os ouvidos na esperança de capturar um ínfimo som, uma migalha que nos garanta a existência de outras pessoas no outro quarteirão, do outro lado da rua, no prédio ao lado, mas o silêncio é absoluto, ou quase, porque aqui dentro há o som do cd que o Phillys colocou para tocar e das conversas deles três quando falam alguma coisa, também o arranhar dos talheres quando eu estava comendo, ou o tamborilar dos nossos dedos sobre o tampo do balcão, sem falar no arrastado caminhar do Phillys de um lado para outro, fingindo estar sempre ocupado para que não pensem que ele não faz nada senão bisbilhotar a vida dos fregueses, ou o barulho da descarga no banheiro quando a ruiva abre a porta e nos olha enquanto arruma o vestido e parece pedir desculpas por ter-nos incomodado. Talvez seja então a primeira vez que noto um indício de apreensão nos seus olhos quando olha uma vez mais através da vidraça para a esquina e não vê nada. O Phillys escorado ao fundo do bar observa o prédio em frente onde nenhuma luz está acesa, e é noite, não muito tarde, mas é noite. O velho olha sobre os ombros desconfiado, afrouxa o nó da gravata ridícula, tosse umas duas vezes e olha para a ruiva esboçando um sorriso infantil. Phillys abre a porta, caminha dois passos à esquerda da entrada e retorna. Mais dois minutos, eu penso, depois saio daqui. Olho o relógio na parede e com um certo alívio percebo que os ponteiros estão se mexendo, porque começava a acreditar em realidades alternativas, e é exatamente quando o prazo que me dei expira que olho para a esquina e vejo uma Layla sorridente hesitando um segundo ao atravessar a rua, e nesse segundo nossos olhares se cruzam e basta isso, salto como um gato, jogo ao Phillys uma nota que deve cobrir minha despesa, e escancaro a porta, não sem antes olhar para trás, para eles que ficam, com um ar vitorioso, escancaro a porta e respiro em largos haustos o ar da noite, atravesso o limiar que me separa do mundo lá fora, onde o Phillys não é soberano, nem há o velho amante da ruiva com suas gravatas e ternos baratos, nem a ruiva com seu amor de conta-gotas, esse mundo de acasos onde deslizo suavemente sendo... Quem serei para essa Layla? Um Dario seguro, um conquistador, um vencedor, um construtor de casas e telhados, um flagelo aos fracos, um ombro largo e poderoso, um aperto de mãos caloroso, um sorriso franco e o reservatório de todo o carinho de que ela precisar nas próximas duas ou três semanas, para depois retornar numa quinta-feira para junto deles e fingir que nada aconteceu, que não somos rapinas em busca de carne fresca todos nós que andamos por este mundo, bendito seja e para sempre o seja, falcões da noite, noctívagos, hopperianos certos da porta ou da janela às nossas costas, ao nosso lado, e jogando, jogando sempre.

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