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Contos-->O GARNISÉ -- 14/04/2002 - 07:28 (Paulo de Goes Andrade) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

O GARNISÉ

Paulo de Góes Andrade

Logo que anoitecia, fazia parte da sua rotina diária, dona Nazinha providenciava o recolhimento das suas aves no galinheiro, que mantinha no fundo do quintal.
Numa tarde, antes daquele seu trabalho, preocupada com a inapetência do filho, esmerou-se no preparo de um mingau de fécula de araruta para Teseu.
Não sei por quê o rapaz tinha esse nome, já que os seus genitores, na simplicidade de suas vidas, nunca ouviram falar em heróis gregos; nada sabiam de mitologia, nem tão pouco de deuses do Olimpo. E o filho de dona Nazinha em nada se comparava ao deus grego, simbolizado como modelo de muita força, com certa analogia aos feitos de Hércules. Era de porte normal, sem nenhuma musculatura que chamasse atenção. Um tipo comum de brasileiro nordestino. Aliás, muitos pais se dão ao direito de botar nos filhos nomes que não lhes agradariam, com certeza, quando se conscientizassem (eu, pelos menos, odiaria) dessas preferências inusitadas. No Nordeste é comum batizar o filho, ou filha, com o nome de santos, do que conste (ou apareça) na folhinha do calendário no dia do nascimento do menino, ou menina. Quem tiver sorte, não vai ser um Elesbão, Epifânio ou Gertrudes. Outros escolhem nomes bíblicos. Registrar um filho como Jeroão, Jeosabeate, Elisafate, Acazias e outros e outros, é de um mau gosto a toda prova. Desculpem-me aquelas figuras do Velho Testamento. Mas...
Entre frangos, galinhas e perus da sexagenária senhora, havia um garnisé, o galinho, que a gente conhece, metido a galo, muito arisco e elegante, mesmo no seu porte minúsculo.
Esta história tem muito a ver com aquela ave, porque, de qualquer maneira, foi o bichinho o responsável pela mudança de vida do filho querido de dona Nazinha, tirando-o do mau caminho. Dizia ela, orgulhosa, às amigas, tempos depois.
Viúva, desde que Teseu e outros dois filhos eram menores, não pôde lhes oferecer mais do que o curso primário na escola pública da municipalidade, onde o menino se sobressaía aos irmãos pela sua vivacidade exuberante; pelas molecagens e gaiatices, que faziam rir até a sisuda e respeitável diretora da escola, dona Luzinete.
O que a mãe faturava na bodega era insuficiente para manter a casa. Para complementar as despesas domésticas, vendia ovos e aves abatidas para a vizinhança. A trabalheira com as suas criações era enorme, mas compensadora.
A pobre mulher lutou heroicamente para criar seus dois rapazes e a filha. O marido não lhe deixou nenhuma pensão. O INPS, naqueles idos de 1940, era uma vergonha. A malversação já funcionava. Era preferível não recolher qualquer centavo ao instituto. O desleixo do poder público já era um mal crônico, que afetava, como ainda hoje, a classe popular, que é mesmo a mais prejudicada, desde que este Brasil é Brasil. A filha Janete, casou cedo, antes dos vinte anos, com um próspero comerciante da praça. O peso diminuiu-lhe das suas costas. A moça se deu bem, para felicidade de dona Nazinha.
O seu segundo filho, José, apelidado de Zé Galego, pelo fato de ser alourado e de olhos azuis, como o falecido pai, era mais aventureiro do que trabalhador. Era a dor-de-cabeça da velha. Vivia metido em encrenca. Quando não chegava em casa bêbado, vinha com a cara marcada de hematomas. “Homem que é homem, não leva desaforo pra casa”. “Resolve no braço”. Abria a boca, convencido. Um dia, deu-lhe na “telha” e sumiu pelos caminhos do Sul, que sempre foi o rumo
natural do nordestino à toa na vida. Não dava notícias, muitas vezes, até por um ano ou mais. Sem que ninguém imaginasse, lá aparecia “o desmiolado”, como, em certas ocasiões, zangada, explodia a mãe. Chegava bem vestido e com algumas economias no bolso. Tinha “batalhado”, proclamava, nos restaurante da Praça da Sé, em São Paulo, ou, outras vezes, nos botequins da Praça Tiradentes, no Rio, lavando pratos e fazendo faxina. Também, logo jogava tudo fora, em jogatinas, bebedeiras e mulheres. Era interessado em todas as formas de jogos de azar: roleta, bilhar, sinuca. Então no carteado, era um expert. Assim, em pouco tempo defendia o dinheiro para voltar de novo para o Sul.
“Eu só posso contar com você, Teseu”. Era o que ouvia da mãe. Como o pai, tinha jeito para comerciante. Nos seus vinte e poucos anos, enfrentou com seriedade o batente e botou o negócio, deixado pelo velho Virgílio, para diante.
Atrás do balcão, simpático como era, dava o seu show diário. Falava, gesticulava, cantarolava. Improvisava até versos, mexendo como um e com outro freguês, que, às gargalhadas, findava por adquirir outras mercadorias. Tinha o dom de repentista.
“Esse devia estar num picadeiro de um grande circo”. Alguém exclamava. A sua maneira peculiar de atrair as pessoas era um caso raro. Não tinha outro igual. Era um artista em potencial.
Continuava solteiro e não pensava ainda em casamento. Comentavam que as moças do lugar não lhe davam atenção. Era pela péssima reputação de mulherengo incorrigível. Alegavam. Na verdade, Teseu era assim. Mandava e desmandava na zona do meretrício dali, no chamado “Beco das Donzelas”. De fato, era queridíssimo entre as mundanas. Raramente deixava de freqüentar a “pensão da Zilda”, uma pernambucana cinqüentona, de Serra Talhada, que mantinha, sob sua proteção, umas dez mulheres para o deleite dos seus fregueses.
Às sextas-feiras, sábados e domingos, o salão da boate fervilhava. Uma velha eletrola RCA-Victor explodia em sons, de músicas variadas que iam do baião, samba, fox, rumba, tango ao bolero. Teseu, péssimo na arte de dançar, depois de umas e outras, traçava o que viesse, até o Hino Nacional, se tocasse. Só saía dali pela madrugada. Dona Nazinha acostumou-se logo com a vadiagem de fim de semana do filho. “Ele merece, depois de uma semana de tanta luta”. Afirmava às conhecidas.
Poucos rapazes daquela época livraram-se de doenças venéreas. Teseu não foi uma exceção, confirmava doutor Gervásio, o médico do posto de saúde do município, receitando-lhe uma série de penicilina e submetendo-o a uma rigorosa quarentena. Foi um castigo, não só para o coitado, mas também para a mãe. O movimento das vendas na bodega caiu sensivelmente, com a ausência de Teseu.
Depauperado, fastioso, além de muito triste, claro, permaneceu em casa por vários dias. A sua ausência foi reclamada pelas prostitutas, na zona. As dores no membro genital, na glande, eram insuportáveis. Nascera-lhe ali uma verruga que, conforme explicação do médico, era o mal provocado pelo estreptobacilo de Ducrey. Vulgarmente tem o nome de cancro mole. Nem a calça do pijama, por mais esforço que fizesse, suportava no corpo. Vivia praticamente nu em casa.
Por insistência da mãe, acomodou-se na cadeira, de modo que os seus genitais ficaram soltos entre as pernas, que formavam um ângulo de noventa graus.
- Taí, filho. Do jeito que você gosta. A panela fica aqui com o resto.
- Mãe, o mingau eu sei que tá ótimo. Quem tá ruim pra danar sou eu.
- Que nada, meu filho! Come isso aí! E saiu para o quintal. Estava na hora de guardar suas aves no cercado do galinheiro.
O garnisé e mais dois ou três frangos, fugiram da vigilância de dona Nazinha, e andavam à cata de migalhas pelo chão da cozinha e da sala-de-jantar. Em dado momento, um grito de horror ecoou de dentro de casa até aos ouvidos da velha lá fora. As aves, alvoroçadas, corriam sem direção com as passadas apressadas da mulher que partia em socorro do filho.
O quadro foi estarrecedor para dona Nazinha, que se deparou com Teseu, aos berros, num aiaiai interminável, esforçando-se em correr pela casa, na ânsia de esmagar com a panela do mingau o arisco garnisé que, embaixo da mesa, acabava de dar uma certeira bicada na verruga avermelhada do pobre Teseu.
Doutor Gervásio chamado às pressas, deu um jeito, com pomada, gaze e esparadrapo, na parte violentada pelo galinho de estimação de dona Nenzinha.
Teseu, depois daquele episódio, mudou de vida. Ele mesmo dizia que lhe serviu de lição. Casou. Constituiu família e tornou-se até religioso.
Esta história, tempos depois, ele contava com muita graça, hilariante como ele só, arrancando boas gargalhadas da rapaziada a seu redor, na pracinha da cidade, inclusive de mim.

Brasília – 09 / 04 / 2002
(s)



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