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Contos-->CONTO DA SEREIA -- 13/05/2000 - 17:32 (FAFÃO DE AZEVEDO) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Numa linda manhã ensolarada, Maria comentou com as amigas, ao sair da água, esfregando as mãos por cima do maiô na altura do ventre, com um sorriso nos lábios que deixava transparecer um pouco do cansaço de ter nadado quase mil metros e muito da ingenuidade moleca que, normalmente, só era percebida por quem a conhecia muito bem:
- Acho que estou grávida...
A frase, ao contrário do que costuma acontecer em rodas de mulheres, não causou impacto quase nenhum. Não era a primeira vez que ela se declarava em estado interessante por um atraso às vezes de três ou quatro dias em sua menstruação (regularíssima como ela mesma gostava de tornar público). Mas também não passou em branco, pois seu círculo de convivência ali, na piscina natural do Parque, contava com pessoas que buscavam no sol, na água, na plenitude da natureza e no bom humor, as energias consumidas em desilusões amorosas muito mais que a saúde física das ginásticas tão em moda nos dias atuais. E os comentários foram surgindo, vagarosa e galhofeiramente:
- Mesmo, querida? Há quanto tempo... umas oito horas mais ou menos?
Maria continuava sorrindo, em pé, espalhando gotas caídas de seus cabelos, da altura de um metro e oitenta centímetros do chão, que respingavam no corpo quente das outras que se bronzeavam deitadas em toalhas ou esteiras, provocando mais ainda seus risinhos debochados como se fossem cócegas.
Alta, muito alta e bastante magra, Maria não acreditava na sua beleza. Talvez por se desejar dentro dos padrões comuns de capas de revistas: coxas grossas, bundinha arrebitada... Mas, não. Era uma morena bem morena, bem alta e bem magra, porém seu corpo, tostado de sol, chamava a atenção dos homens e, inclusive, das mulheres. E não se duvide aqui dos desejos que provocava em todos. Só que seu rosto, que parecia ser ou ter inspirado algum verso de moeda valiosa e antiga, cunhada em metal amarelado, dessas que a gente só conhece quando viaja para o exterior, alternava-se da seriedade às gargalhadas escandalosas tão freqüentemente que, conjugado com sua estatura e a liberdade expressa no olhar, impunha respeito e até mesmo medo a quem imaginasse qualquer ousadia.
E foi esse mesmo rosto descrito agora que ficou entristecido por um lapso de tempo quando Maria, ao sentar-se em sua cadeirinha de armar, lembrou-se que estava desiludida com seu namorado, e que depois da última briga esteve, sim, com ele algumas vezes, sem mais tentar a reconciliação. Tentava muito mais era esquecê-lo aos poucos. Sabia que abruptamente seria impossível.
Esta fração de segundo, que lhe pareceu horas, foi como veio, quando Maria se decidiu em pensamento a fazer o exame médico, pois era mulher de certezas e não de dúvidas, e logo voltou a participar dos assuntos fúteis e hilariantes daquele encontro diário à beira d água que tanto alimentava sua vida depois da escuridão pela qual havia passado nos tempos em que esteve mergulhada no alcoolismo que, pelo último fio de sua lucidez já quase totalmente diluída, a proibira de ter o filho que sempre quisera.
Agora estava liberta. Tinha comemorado intimamente, há poucos meses, seu renascimento para a vida sem drogas e sem bebidas. "Quatro anos de lucidez!", dizia ela. E quando dizia lucidez era porque estava realmente consciente de sua nova realidade. Era solidária com outras pessoas que amargavam essa dependência e muitas vezes havia participado ativamente nos trabalhos de convencimento de gente que avaliava em situação semelhante às que ela conhecia muito bem, para um tratamento mais contundente, mas nunca tomava ares de puritanismo. Continuava freqüentando os bares e as festas com os amigos: "Parei de beber pra mim, e não pros outros". Sabia de todos os perigos pelos quais passou e, ainda assim, ria das proezas que fez nos tempos de sua escravidão ao vício, quando as contava aos mais íntimos sem pedir segredo nenhum.
Um filho agora era tudo que queria. Um filho nascido quase junto com ela. Um irmãozinho nascido dela própria.
Estava assustadíssima, não o queria assim, sem pai, sem planos...
Dois dias depois, o resultado do exame foi positivo. Apavorada chegou a pensar em renunciar a essa gravidez. Tentar outra vez numa circunstância mais favorável... Mas, de qualquer maneira, tinha que falar com R.
Quem poderia afirmar se ela compreendeu ou não as razões pelas quais o rapaz se acovardou ante a idéia que ele mesmo havia alimentado, inúmeras vezes, quando se encontrava no aconchego e no calor daquele corpo que dava a ele tanto prazer e provocava ao mesmo tempo tanto ciúme?
O fato é que agora estava ali, diante dele, o fruto concreto daquele amor confuso que já o fizera perder a cabeça e agir irracionalmente, tomando atitudes de que jamais se julgara capaz, para arrepender-se depois e ir implorar o perdão humilhado, repetindo esse ciclo tantas vezes quantas um náufrago reúne suas forças para ir à tona buscar o ar que lhe adia por alguns segundos a morte já sabida e ainda não aceita.
R., naquele instante em que soube que seria pai, deixou escapar pelo olhar vazio e na palidez do rosto toda a sua insegurança infantil, advinda do medo que tinha de amar aquela mulher que já havia sofrido mil vezes mais do que ele, passado por perigos que ele só conhecia de estórias em quadrinhos e filmes de TV; e que hoje, bem equilibrada, vivia as sensações alegres de uma travessia rumo à felicidade embora ainda em cima do arame, e que por qualquer tropeço emocional, que bem poderia ser causado por ele próprio, arriscava despencar novamente no precipício diabólico do qual nunca se soube exatamente como havia emergido. "E agora levaria consigo um filho dele". O pavor percorreu-lhe a espinha como um vento frio, indo se aquecer bruscamente em sua mente provocando de chofre a proposta do NÃO.
E quem poderia exigir de Maria que compreendesse essas razões? Ela estava com trinta e poucos anos e se sentia muito cansada de precisar ter coragem para si e para os outros como sempre teve. Queria o conforto e o consolo que nunca lhe foram dados e cujo calor buscou obter, durante toda a sua vida, na forma fugaz dos líquidos e pós ingeridos e aspirados, mas que agora conseguia simular no frescor daquela água, nascida da fonte, que enchia a piscina onde deslizava todas as manhãs, braçada atrás de braçada, até atingir o cansaço físico que a aliviava do outro.
E foi naquela água, que Maria afogou a depressão de se sentir ainda sozinha, mesmo sabendo estar internamente acompanhada. Foi ali, embaixo daquelas árvores, que percebeu que não podia adiar, que percebeu que seu futuro era agora. E foi ali, sob as nuvens de uma manhã nublada, que seu sorriso voltou a brilhar e refletir na pele das outras pessoas, sem que ninguém precisasse repetir com ela a simpatia aprendida na infância para espantar a chuva "hei sol, rei sol... hei sol, rei sol...".
Semanas depois, quando ela já se sentia mais arredondada, embora ninguém ainda pudesse reparar, R. ligou encabulado, propondo encontro, dizendo que queria beijar sua barriga. Maria o recebeu em casa, interrompendo, calma e energicamente, as considerações que ele ainda insistia em fazer sobre suas sensações frágeis ao impacto da notícia do bebê, e de pé, um pouco curvada, com seu lindo rosto voltado para o próprio abdômen, como se pudesse ver através das roupas e das próprias carnes, declarou serenamente que iria aceitar todo o carinho que ele pudesse dar e todos os recursos de que ele pudesse dispor, mas que ficasse tranqüilo: "Não precisamos de nada, nesses poucos dias de convivência chegamos à conclusão de que a gente só tem obrigação mesmo é de ser feliz".


Do livro "Mesa de Bar" (Thesaurus Editora - Brasília, DF)
Pedidos para o autor via e-mail.
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