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Contos-->Vida numa Casa de Vidro -- 13/10/2001 - 14:41 (Gabriel Valmont) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
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| Vida numa |
| casa de |
| Vidro |
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- Gabriel Valmont


João morava sozinho. Me lembro ainda agora, que ele não chorou durante os primeiros meses. Me lembro novamente, que ele nem falou durante os primeiros meses. João era como os outros, assistia aos programas de esporte na televisão, durmia às dez da noite, tomava café lendo jornal durante a manhã, e as vezes até cozinhava alguma coisa. O que diferenciava João de todos nós era apenas uma: ele vivia numa casa de vidro.
Montada por uma empresa de televisão com a ajuda da prefeitura da cidade. Uma casa redonda, sem cantos, sem portas nem janelas. Dizem que a casa foi construída com o João já dentro dela. Estava pronta no dia 30 de Agosto, desde então a casa e o seu morador atraem curiosos, estudantes, empresários, pipoqueiros, publicitários, jornalistas, e meros fãs.
Sim, fãs! Pessoas como eu que acabaram se apaixonando pela simplicidade de João, pelos seus gestos, pela sua rotina. E para mim era fácil, ele morava em frente à minha casa. Tinha dias em que eu acordava pela madrugada para poder ver se ele estava bem ou não. Toda manhã eu ia até a sua casa vê-lo, dizer bom dia, mas ele não respondia. Diziam que ele não ouvia, outros diziam que ele era mudo, surdo! A verdade é que João sentia-se solitário, perdido e não existia razão para comentar alguma coisa.
Não, nos primeiros meses João não expressava tristeza nem felicidade. Era a mesma face o tempo todo: indiferentemente sério.
Aos poucos João foi atraindo mais gente, turistas, artistas, pessoas famosas; criaram uma emissora para transmití-lo para as outras cidades do país. A audiência estourava. Aparecia em capas de revistas, em blusas, outdoors, títulos de livro. João não tinha passado, ninguém estava interessado em seu passado, aliás, João não tinha nome. Este nome - João - fui eu que dei à ele. Algumas empresas começaram a procurar seus representantes, foi assim que a propaganda em cima do morador da casa de vidro começou; passou a vestir roupas com as marcas estampadas no peito, televisões com os símbolos bastante visíveis, cosumir cafés com marcas amplamente estampadas e tudo mais. Eu tinha comprado tudo. Tinha reformado minha casa para ficar igual a dele - entretanto, minha casa não era de vidro.
Às cinco horas da tarde, quase todos os moradores do bairro iam vê-lo tomar sua caneca de café. Muitos até iam com suas canecas e o acompanhavam.
João nunca via ninguém. Para ele, ninguém existia. As poucas vezes que olhava para fora da casa, olhava para o nada, profundamente.
João não era feliz nem infeliz. Nem sei se podia dizer que ele vivia.

Durante uma madrugada, eu acordei para ver se estava tudo bem com ele - isso já tinha se tornado rotina.
Me espantei quando o vi em pé, na frente do vidro, olhando para uma mulher na mesma posição. Esta mulher, era a única no local. E era a única a qual João tinha olhado antes. Sua face tinha mudado, ele não estava mais indiferente, estava triste, demonstrava com o olhar a sua solidão. Levantou a mão e tocou o vidro, abrindo-a para receber a mão da mulher do outro lado. E pela primeira vez João chorou. Chorou e beijou o vidro compulsivamente na tentativa de ultrapassá-lo e encontrá-la.
Falou algumas frases que eu não pude ouvir. Ela respondeu, também triste.
Durante a madrugada, João arrastou sua cama para bem próximo de onde a moça estava. E lá, deitou-se olhando infinitamente para ela que ainda ficava em pé triste, chorando.
João dormiu.
A moça partiu e nunca mais voltou à vê-lo.

O que as pessoas viram depois foi um João revoltado, violento, triste. Um homem que mantinha sua face úmida de lágrimas. Sua casa aos poucos foi sendo destruída por ele mesmo, sua tv estava quebrada, suas roupas de marca estavam rasgadas; ele já não tomava mais café às cinco da tarde. E já não dormia - nem eu -, ficava acordado durante toda a madrugada, no mesmo lugar em que ele a tinha visto pela última vez. João não tinha telefone e nem nunca tinha entrado em contato com os seus chefes. Tentei, algumas vezes, falar com ele, mas a única resposta que eu tive foi uma pergunta, "onde está ELA?".
João passou de indiferente para melancólico. Tinha tentado arrombar a casa e fugir, mas o vidro era feito de um material contra arrombamentos. João gritava alto, gemia, quebrava coisas. As pessoas foram parando de ir vê-lo, raríssimas exceções ainda apareciam em frente a sua casa e viam a sua agonia.

Durante uma madrugada eu estava a vê-lo da minha janela.
João estava no mesmo lugar em que ela o tinha deixado, ele cortava seu pulso com uma faca.
Era a primeira tentativa.
Sai correndo, gritei para ele parar de fazer aquilo, falei que eu o amava, que gostaria de vê-lo vivo. Então João me respondeu em um tom triste e cansado: "Eu não vivo, nunca vivi".
Morreu ali mesmo, olhando para fora da casa, para a mesma profundidade.

Ninguém nunca mais apareceu ali. Levaram 3 dias para retirar o corpo de João da casa, ninguém - com a minha exceção - viu João ser retirado pelos seus "donos".
E todos continuaram a viver como se nada tivesse acontecido, como se um João não tivesse existido.
Aliás, há aqueles que dizem que ele nunca existiu. Há aqueles que dizem que ele nunca viveu. Apenas eu sei, apenas eu, que um dia ele amou.



...FIM



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