INTERVENÇÃO: NOVA FACE DA VIOLÊNCIA
Dèlcio Vieira Salomon
A convocação do Exército para patrulhar Minas Gerais, no vácuo deixado pelos grevistas, leva o observador atento a meditar sobre as contradições e contrastes escondidos no âmago do fato.
Por mais que o governador de Minas declare que não se tratou de intervenção federal, esta não deixou de existir. Disfarçada, mas intervenção.
Sem discutir a legalidade ou ilegalidade da greve, é de se registrar complicador para o Exército no cumprimento de sua missão.
Afinal, a partir do momento, em que o exército é convocado para substituir a polícia militar, não estará se apropriando das funções pertencentes constitucionalmente à polícia estadual, o que equivale a dizer que, em relação às tropas federais aqui desembarcadas, a prerrogativa constitucional de “chefe das forças armadas” pas-sa a ser do governador? Ou, subestimando o po-der estadual, as tropas continuarão a obedecer diretamente ao presidente da República?
A esse complicador soma-se outro. Estranhamente fato dessa natureza se dá no bojo de uma greve, e não por causa da exacerbação da violência que tem tomado conta de todas as estruturas da sociedade. Desde a do crime organizado e da corrupção generalizada, até a praticada pelos próprios governantes, através de leis injustas e do gigantesco arrocho fiscal e salarial praticado contra a classe média, fulcro de equilíbrio da própria sociedade.
Nova teoria sociológica confirmará que, em decorrência da teoria marxista da luta de classes, o estamento weberiano denominado “classe média” é hoje a classe violentada, alocada entre a oprimida e a dominante.
Evidente que os militares tanto das forças armadas como da polícia pertencem a essa classe média. Lamentavelmente soldados e policiais acabam sendo manipulados pela classe dominante. e por isso ficam por um triz a entrar em choque, uns na função de repressores e outros no exercício da luta pela sobrevivência, motivo último de toda greve.
Paradoxalmente, o governo estadual, diante da greve dos policiais, se sentiu violentado. E, ao recorrer ao mecanismo de projeção, identificou-se, indevidamente, com a sociedade, para recorrer ao “coup de force”, e se opor às reivindicações democráticas próprias da eclosão do movimento grevista.
Inegável que seu gesto fez lembrar o do outro governador tucano, em 1997. Ao seguir instruções de FHC, então presidente, endureceu a repressão aos militares grevistas, com medo, como hoje, de que o exemplo mineiro fosse seguido pelo resto do país. E o desfecho foi o mais lamentável para triste memória da história de Minas.
Não é o caso de contrastá-lo com o exemplo de Itamar Franco? Este enfrentou, também, a greve da PM e, sem recorrer ao governo federal, nem à Justiça para decretar a ilegalidade da greve, soube superar o conflito. Talvez, porque, apesar de todos seus defeitos, tinha a virtude que o atual governador não tem: experiência política e visão de estadista. Ou talvez, porque sua assessoria era mais competente.
Segundo o Manifesto do VIII Congresso Estadual dos Jornalistas em Mariana de 6/6/04, os jornalistas foram coibidos de dar cobertura ao fato provocado por ato de extrema infelicidade do governo estadual.
No fundo, sob o pretexto de garantir a segurança, quis realmente enfraquecer o movimento grevista. Para tal se valeu de remédio extremo. Seu gesto acabou deixando em todos nós a grande dúvida: se o crime organizado criar aqui o mesmo clima já plantado no Rio de Janeiro ou em São Paulo, a que medida recorrerá?
A desconfiança recíproca entre governo e PM já se implantou. Convocar o exército para operação de desmanche de greve de polícia militar e civil é violentar a própria polícia e decretar, por antecipação, a fragilidade do poder policial no Estado.
O que todos tememos, por certo já ronda a sociedade mineira, com possibilidade de um dia eclodir, mesmo contrariando nosso desejo: se, a cada movimento reivindicatório, a polícia se julgar violentada, em futuro próximo poderá apelar para gestos outros de violência. Afinal faz parte dos contrastes da violência o dito popular: “violência gera violência”.
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