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Artigos-->BATUCADA DA VIDA - 5 -- 19/07/2004 - 13:29 (Marco Antonio Cardoso) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O carnaval parece zombar de toda a condição humana, liberando o mais recôndito ridículo que se guarda no fundo da alma, para mostrá-lo nas fantasias e exacerbações que a época permite, sem que olhares reprovadores aprisionem novamente a parte mais louca e inconseqüente de cada ser.

Os blocos e batucadas cruzavam a Praça da Sé, animando os moradores e transeuntes da região. O carnaval de outros tempos era mais tranqüilo que os novos, pois a marginalidade a que fora entregue a população do centro velho da cidade favoreceu a formação de criminosos, ladrões e traficantes, que usavam os velhos pardieiros que se estendiam desde a Praça da Sé até o bairro de Santo Antonio Além do Carmo, como esconderijo e moradia, sendo acoitados pelos moradores, muitos deles parentes destes malfeitores, que dividam entre si a condição degradante da miséria urbana.

Anja vivia desde a morte de Bartira, na casa do padrinho de consideração, Torquato. A casa de Torca se confundia com seu boteco, duas portas sempre abertas numa ruela antiga e suja davam para um interior com aspecto degradante. Escuro, devido à altura do cômodo, paredes pintadas em azul, manchadas pela umidade e pelas infiltrações, tinha colados cartazes da cerveja Carlsberg e de Coca-Cola. Algumas mesas de madeira, parcialmente cobertas por toalhas plásticas com desenho xadrez, coloridas de vermelho e branco, se espalhavam sem muita ordem sobre o velho piso de tabuleiro preto e branco. Um velho balcão separava uma velha geladeira Champion e um fogão da área dos fregueses. Pendurado na parede, um chifre de boi de onde saiam folhas da "Espada de Ogum", ficava logo acima do quadro de São Jorge, como a proteger a casa, na passagem lateral ao balcão.

O velho Torca servia suas bebidas misturadas com folhas e outras coisas, além de tira-gostos preparados na hora, para seus fregueses, e na hora do almoço sempre havia o "PF"que os moradores da área não deixavam de apreciar, pois era preparado por uma preta quituteira, que vendia cocada e outras guloseimas pelas ruas da cidade, mas ganhava uns trocados cozinhando, e bem, para o velho português, fazendo do boteco do Torca um lugar popular, também pela hospitalidade e alegria com que o velho recebia seus fregueses.

Uma porta tosca dava acesso a um longo corredor onde ficava o sanitário e mais três cômodos que serviam de sala e quartos para o português, que migrara para o Brasil com seus vinte e poucos anos trazendo consigo a jovem esposa Carmela e um filho, que não chegara vivo ao país. A vida dura do casal e a doença que deixara Carmela fragilizada, devido a perda do menino, impediram que eles tivessem outros filhos. Por fim viúvo, Torquato se enamorou de uma bela mulata que parecia estar interessada em casar-se com ele, mas ela era sem vergonha e enchia a cabeça do coitado de chifres de toda espécie.

Para ele era o fim. Não queria mais nada sério com mulheres, preferindo manter relações com as putas, que se alastravam pela região, do que se casar e passar pelo vexame de encontrar um homem em sua cama, traçando sua mulher, como fizera a mulata que o enfeitiçara alguns anos antes. Ele colocou os dois para fora debaixo de porrada, mas chifre tomado não se tira, e a marca daquele acontecimento ele carregava até hoje.

Durante o carnaval ele preferia manter o boteco fechado tão logo anoitecia, porque a vagabundagem era muito grande naquelas ocasiões, e o policiamento era muito acanhado.

Anja varria a soleira da porta, e de vez em quando parava para ouvir a música animada tocada pelas bandas que passavam na Praça da Sé, seguidas de foliões fantasiados de careta. Nos censurados anos setenta o carnaval da Bahia vinha mudando rapidamente, principalmente depois que Dodô e Osmar inovaram, criando o agora famoso trio elétrico. Há versões que afirmam mesmo ter havido uma simultaneidade na invenção da guitarra elétrica. O fato é que desde os anos sessenta o baiano quer mesmo é pular feito pipoca atrás do trio elétrico, cantando, suando e bebendo cerveja, namorando as morenas da terra e as turistas branquelas, cada vez mais freqüentes, e caindo de cabeça nas confusões que sempre acontecem nesses ajuntamentos, quando se bate em qualquer um e se apanha de quem quer que seja, e fica tudo por isso mesmo.

Os garotos e garotas que conviveram com Anja sob o viaduto de sua infância agora eram rapazes e moças. Muitos haviam sumido, levados pela morte prematura ou pela prisão por delitos nas ruas da cidade. Muitas garotas já eram agora putas feitas, mas Anja parecia estar imune, devido à proteção do velho Torca. Mas ela não esquecia dos antigos amigos e amigas, e não rejeitava ninguém por sua condição.

Um dos garotos, apelidado desde há muito como Tico, sempre dedicou um grande carinho para Anja, e agora que afloravam para a vida adulta, podia-se perceber que ele muito a desejava, mas não tinha muito jeito para travar um diálogo mais romântico com a velha amiga, que muitas vezes o fazia de confidente.

Tico também logrou escapar da marginalidade, indo auxiliar um engraxate do Terreiro de Jesus que fora com a cara dele, e agora vislumbrava grandes possibilidades, sonhador que era, pensava em trabalhar e formar sua família, a família que nunca teve, ao lado de Anja.

Tico sempre passava na porta do bar de Torca, quase sempre tinha um pretexto para lá entrar, nem que fosse só pra tomar uma pinga. O que ele queria de fato era ver a pequena garota, agora despontando como mulher, cheia de encantos, mesmo que as marcas de sua difícil infância teimassem em permanecer no seu semblante, sempre carregado.

- Anja, vamos lá na frente um pouquinho, vamos ver os "Inocentes". Tico insistia, mas ela não estava muito interessada na festa. Anja tinha outras idéias na cabeça.

- Vá você Tico, não quero me meter naquela bagunça.

- Quem te vê falando assim pensa até que você não é daqui. Onde já se viu baiana não gostar de carnaval?

- Olha quem fala! Muito me admira você, que só pensa em coisas sérias, agora vir aqui me chamar para pular carnaval. Eu é que estou te desconhecendo.

- Sabe o que é Anja, você é minha amiga, e eu sempre te vejo triste, que pensei em te fazer sorrir, com um pouco da alegria das ruas.

- Muito obrigado por pensar em mim como sua amiga. Eu também te quero muito bem.

Tico engolia aquelas palavras com dificuldade. Como fora burro! Porque não tinha coragem de confessar que a amava?

- Anja, você pode me servir uma branquinha?

- Claro! Entre.

Mais de uma vez ele tentara tomar coragem, junto com um copo de cachaça, mas nada. No entanto, sentia que agora poderia conseguir.

A caninha desceu queimando por sua garganta, mas não sem antes ser reverentemente dedicada ao santo, como rezava o costume.

- Vou querer outra!

- Vai se embriagar, é?

- Sente um pouco comigo, Anja. Quero contar-lhe algo.

Ambos sentaram-se à mesa. O bar estava estranhamente deserto naquele final de tarde da terça-feira momesca.

Tico dirigiu seu olhar mais expressivo para Anja e começou seu ensaiado discurso.

- Todos nós temos sonhos. Eu também tenho. Penso em sair das ruas, conseguir um trabalho melhor. Até me matriculei no Mobral! Sinto que vou conseguir ser alguém, e quero mais que tudo ter minha família.

Nesse momento Anja interrompeu Tico, pois pressentia para onde a conversa estava indo.

- Você é um bom moço, sonhador sim, mas com os pés plantados no chão. Sei que vai conseguir tudo que quer, mas deve ir embora daqui. Este lugar é como visgo, nos prende, mantém uma corrente invisível amarrando cada um de nós a um destino só.

- Eu quero sair daqui, mas quero levar alguém comigo, para dividir meus sonhos.

Nesse momento passavam dois policiais na porta do boteco, fazendo a ronda de Cosme e Damião. Um deles olhou para dentro e abriu largo sorriso para Anja, que também o retribuiu como nunca havia feito para com outros rapazes, inclusive Tico, que percebeu e se aborreceu com aquilo.

- Você está namorando o cabo Anselmo? Perguntou Tico com ar despeitado.

- Quem me dera, Tico. Respondeu Anja com perfurante franqueza. Ele me flerta, mas sei que não quer nada sério comigo. Sei até que está noivo de uma fulana da Saúde. Mas eu sinto por ele uma afeição profunda. Acho que estou apaixonada.

Nesse momento Tico bateu com o copo na mesa e pediu mais uma dose. A saideira, como disse.

- Não se aborreça comigo, Tico. Nós não amamos a quem gostaríamos de amar. muitas vezes amamos a que não nos merece, mas fazer o que.

- Fique comigo! Falou corajosamente o jovem engraxate.

- Beba sua pinga e se vá. Está na hora de fechar o bar.



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