BATUCADA DA VIDA
Uma homenagem a Ary Barroso e Luiz Peixoto
-Tira essa criança! Eu disse que era pra tirar essa porra! Porque você não me ouviu, hein? Agora se fôda sozinha, não me procure mais.
Batista deu as costa para Cleide e sumiu na noite da cidade, depois de dobrar a esquina do Cruzeiro de São Francisco e descer em direção à Baixa dos Sapateiros.
Grávida de nove meses, largada à toa pelo companheiro, Cleide veio atrás dele, proveniente da cidade de Alagoinhas. Não tinha um tostão e agora, para completar sua desdita, entrava em trabalho de parto, no meio da rua de uma cidade que ela não conhecia, nem tinha qualquer pessoa conhecida, senão o cafajeste que a emprenhou e depois desapareceu para curtir a vida boa de solteiro na capital.
Descendo por uma estreita rua que se liga à praça, Cleide é amparada por umas putas que por ali faziam vida.
Levada para um quartinho atrás de um bar, ela dá a luz uma garotinha, nascida sobe o estigma da desgraça, sua mãe não resistiu ao parto e morreu em seguida.
No bar, bebida e cantoria, a vida levada adiante por quem somente queria divertir-se para esquecer de todo o resto.
Uma branquinha para limpar a mente cheia de problemas, o leite que não comprou para as crianças, o chefe que persegue no trabalho. Os homens ali querem anestesiar a vida e se aliviar nos braços da putas que fazem tudo que suas mulheres não fazem em casa.
Uma fuga, uma válvula de escape, e toda aquela festa, toda a algazarra vai num crescendo de euforia e desastre, até que uma desentendimento qualquer, no balcão, deflagra a briga, peixeiras navegam nas tripas de uns, socos derrubam outros, carteiras afanadas no calor da contenda, quebra-quebra e a polícia aparecendo para prender todo mundo e ganhar uns trocados também.
A garotinha sem nome chora, faminta pois sua mãe morreu antes que ela pudesse sugar algum alimento de seu corpo. A sorte virou-lhe as costa no momento mais crucial de sua iniciada existência.
Na confusão a coitadinha foi deixada ao lado do cadáver da mãe, enquanto as mulheres da vida que ajudaram-na a nascer, procuravam agora fugir de uma provável e dolorosa prisão.
Uma puta velha chamada Bartira encontrou a chorona criança e a carregou daquele inferno.
Bêbada, trazia em sua mão uma garrafa de caninha, que tragava sôfrega, enquanto cambaleava pelas vielas escura e escorregadias, devido ao insistente chuviscar das frias noites de julho.
Bartira ouvia o choro da pequena, nua, enrolada num pano de prato que ela roubara da cozinha do bar, e lhe pedia para parar de chorar, colocando o dedo indicador entre os lábios e emitindo um "chiii" quase inaudível.
Quando não conseguia mais andar, ela simplesmente se apoiou numa parede velha e escorregou até sentar-se no chão. Acomodou a pequena criança em seu colo e encostou a boca da garrafa em seus lábios, ansiosos por alimento. Entornando a bebida, percebeu que a criança, embora rejeitasse o líquido inicialmente, acabou por aceitar a oferta e ingeriu a aguardente, até dormir, por ter ficado embriagada.
O resto da noite vigiou as duas criaturas infelizes. Uma no início de sua jornada de dores, outra já chegando ao ponto de partida para um lugar melhor que aquele vale de lágrimas e miséria.
continua!
Marco Antonio Cardoso
Na Batucada da Vida.
(Ary Barroso e Luiz Peixoto).
No dia em que eu apareci no mundo,
Juntou uma porção de vagabundo
Da orgia.
De noite, teve samba e batucada,
Que acabou de madrugada
Em grossa pancadaria.
Depois do meu batismo de fumaça
Mamei um litro e meio de cachaça,
Bem puxado
E fui adormecer como um despacho
Deitadinha no capacho na porta dos enjei tados.
Cresci olhando a vida sem malícia,
Quando um cabo de polícia
Despertou meu coração.
E como eu fui pra ele muito boa
Me soltou na rua à toa,
Desprezada como um cão.
E hoje que eu sou mesmo da virada
E que eu não tenho nada, nada
E por Deus fui esquecida,
Irei cada vez mais me esmulambando,
Seguirei sempre cantando
Na batucada, na batucada,
Na batucada da vida... |