A Inviolável Solidão do Escritor.
Um dia, quando perguntado sobre os motivos pelos quais escrevia, Gabriel García Marques não hesitou em afirmar: “Para que meus amigos me amem mais”. Francamente, entendo as razões do romancista colombiano. Contraditório o destino do escritor: ser sempre um só em seu ato de criação, a despeito de todas as paixões, ódios ou amores que pode despertar. Escrever é a forma mais gratuita de solidão, abandono e renúncia, porque todo o escritor é um proscrito em seu próprio lugar, entre os seus. Há sempre um exílio metafísico que o cerca e invade, que o obriga os desesperos, revoltas, frustrações ou alegrias mais amargas. Escrever é uma autoviolação.
No romance Cem Anos de Solidão, do mesmo García Marques, o cigano Melquíades, trancado em um dos quartos da casa dos Buendía, redigindo pergaminhos indecifráveis, primeiro ainda vivo, depois em forma de espectro, é a metáfora perfeita do ato de escrever: passa sua vida exilado, banido da realidade, escrevendo a história daquela família, só e mudo, no mais irremediável abandono.
O escritor é, antes de tudo, um só. Melquíades é a metáfora perfeita, Cem Anos de Solidão, a alegoria completa. Um romance que se escreve enquanto o lemos, porque obra da entrega absoluta do cigano Melquíades, um alter ego, imagino, do próprio Marques. Deciframos, ao longo das quase quatrocentas páginas, os pergaminhos da condição humana - representada toda nessa espécie de liberdade e solidão inatas que envolvem a estirpe dos Buendía - e, ao mesmo tempo, reconhecemos nos escritos de Melquíades a miséria que assola o escritor.
O escritor é um miserável não no sentido sociológico do termo, o de indigência ou pobreza material absolutas, falta de recursos, desvalimento financeiro. Muitas vezes ele até o é, dadas as circunstâncias que envolvem a realidade editorial brasileira, mas isso são outros quinhentos mil-réis, se me perdoam a infâmia do trocadilho, e não diz respeito ao que discuto aqui. O mercado é cruel com os artistas de forma geral, não seletiva: o pintor, o concertista, o escultor, artistas plásticos, estão todos sujeitos a lógica do mercado que, em arte, opta pelo que é digerível ou facilmente compreensível, porque a indústria cultural tem como fim único o lucro que seus “produtos de cultura” possam oferecer.
A miséria do escritor é de fundo moral. Refiro-me à miséria no sentido etimológico latino: tudo o que é digno de compaixão, que inspira compaixão, patético, triste, deplorável. E não há nada mais digno de pena do que o escritor, alguém que passa a vida toda lutando contra a essência de sua própria condição. Cria para deixar de ser só, para ratificar sua solidão, oferecê-la, plena e desconfortante, ao outro. Escrever é uma forma de incomodar o outro com a mesma matéria de que se faz o outro: somos todos mais ou menos sós, vivemos todos uma solidão mais funda e transcendente a toda e qualquer aspiração coletivista, socialista, democrática. Nos confundimos com o Homem na Multidão, o personagem de Edgar Alan Poe, que se descobre abandonado em meio ao universo de seres e coisas que o cerca, incapaz de viver plenamente consigo mesmo, e que, seguindo um velho decrépito, reconhece seu próprio crime: a solidão inviolável em que nos vitimamos. O Drama. Ou outra metáfora do ato de criação, não importa.
O escritor é uma criatura miserável, sim, compondo e recompondo o mundo através de fragmentos, lembranças, memória, esquecimento, idéias e sensações, tudo para criaturas tão miseráveis quanto ele. E não me refiro à miséria de caráter também, a degradação ou o vício, falo da miséria de se saber e reconhecer sozinho entre os seus, algo entre difuso e vago, irreconhecível, sempre e inevitavelmente irrefletido, numa solidão impenetrável, porque a essência mesma de todas as suas motivações artísticas.
O paradoxo em que se insere o escritor é justamente esse: escrever é um ato de vontade, de deliberada vontade, um desejo urgente e incontrolável, que beira a ânsia ou a angústia, o desespero ou a melancolia e que, ao mesmo tempo, por conta de tantos abismos, projeta sobre ele a sombra claustrofóbica da solidão. Apesar de possível, a solidão aqui não é apenas aquela que sofremos com a ausência do outro, real, concreto e palpável, e sim um estado de espírito, uma maneira de ver e perceber o mundo como quem reconhece o abandono de cada coisa ou pessoa, o anonimato e a distância.
Certa vez escrevi sobre o destino do poeta: não o de viver em solidão, simplesmente, mas o de transformar a solidão, seguindo sempre numa eterna luta contra a cal abrupta dos dias, inventando amores, mulheres, musas, amigas e companheiras, para ir fazendo da vida algo cada vez mais cheio de tudo, algo que valha a pena e a dor de ser vivida, porque sabe muito bem, melhor que qualquer outro, que sozinho a solidão é pior. E fica doendo impossível no peito. O escritor, romancista, cronista, contista, o que quer que seja, não foge a essa solidão inviolável de que o poeta é a vítima primeira.
Patético é ter de se reconhecer um só e escrever como quem implora por uma atenção minguada, pouca, displicente. Patético é ser alvo do próprio abandono, das verdades que cria. Se um dia, caro leitor, tiver de se compadecer de alguém, que o seja do escritor, que merece sua piedade pelo sentimento de renúncia, entrega e solidão que essa criatura carrega consigo, por tudo o quanto acredita e que não o consola jamais, em momento algum. Porque não há consolo algum em escrever a não ser a idéia mais ou menos grata e incerta de que se é lido, admirado ou respeitado; de que se é, possivelmente, amado.
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